polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

sexta-feira, janeiro 27, 2006


Polaco da Barreirinha ilustrado por Daniel Kondo.





Alma
Pegue o espírito.


“Mas a carne que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!”

( Excerto do poema Gemidos de Arte, do livro Eu, de Augusto dos Anjos[1884/1914] )


O genial Nelson Rodrigues dizia que a única coisa que o mantinha de pé era a certeza da imortalidade da alma. “Eu me recuso a reduzir o ser humano à melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se morrêssemos com a morte.” Pré-existente e sobrevivente, alma é coisa do outro mundo. Negando ou aceitando, todos palpitam. Primitivos, bárbaros ou totêmicos, todos carregamos o diabo da alma que nos carrega. Os ateus, que Deus os perdoe!, já escreveram tratados tratantes, teses massudas, doutorados primários, filosofias magoadas, enciclopédias incompletas, dicionários ilegíveis, só pra negar uma coisa que, para eles, deve ser quase visível de tão palpável. Na Terra, entre robalos, traíras e trutas, tem gente que não consegue ser fiel nem à sua própria alminha. Pescadores de Almas e Homens sabem que alma é luz sob medida. Quem acha que “alma” é igual a “energia” deve bater papo com o ferro elétrico. Ou pedir para o ligarem numa tomada na hora da morte, pra ver se volta. Cruz e Souza era uma boa alma. Augusto dos Anjos era um anjo. Allan Kardec, espirituoso, trouxe a alma do outro para este mundo, isso no Ocidente. No Oriente, há milênios, já era assunto de botequim essa coisa viva que agita a matéria, submetida à lei de causa e efeito, ao “karma”, progredindo ao infinito. Por isso, não é possível que os curitibanos Paulo Leminski e Marcos Prado tenham nos abandonado. Olhe bem, preste atenção. Eles estão aqui. Só pra você ver, leitor(a), como as almas estão com tudo e não estão prosa.


Eternidade Retrospectiva


Eu me recordo de já ter vivido,
Mudo e só por olímpicas esferas,
Onde era tudo velhas primaveras
E tudo um vago aroma indefinido.


Fundas regiões do Pranto e do Gemido,
Onde as almas mais graves, mais austeras
Erravam como trêmulas quimeras
Num sentimento estranho e comovido.


As estrelas longínquas e veladas
Recordavam violáceas madrugadas,
Um clarão muito leve de saudade.


Eu me recordo d’imaginativos
Luares liriais, contemplativos
Por onde eu já vivi na eternidade!


Cruz e Sousa
( 1861-1898)



palmas para as vaias que elas merecem


não têm valor
os valores que não valem vaias
não têm alma
as almas que não batem palmas


vamos aplaudir as palmas
salvas de palmas para as almas salvas
sonoras vaias
aos que não podem ir sem levá-las


Antonio Thadeu Wojciechowski, Plínio Gonzaga Filho e Sérgio Viralobos




descascando cebola


dentro do dentro
no meio do miolo
nas profundas do centro
do núcleo de tudo
é ali, no fundo, no fundo,
que habita você
minhalma doutro mundo


Roberto Prado




se o corpo abandonar minha alma
não tenha de mim uma idéia falsa
não chore, mantenha a calma
estou morto por minha causa


cuidado: assim como sua mala
o meu caixão não terá alça


Marcos Prado
(1961-1996)






sombras amigas
voa, borboleta!
minhas outras vidas

Issa (Japão, séc. XVII)
Livre adaptação de Antonio Thadeu Wojciechowski


Rumo ao sumo


Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.


Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.


Paulo Leminski
(1944-1989)





minha alma
anda anoitecendo
cedo demais


dia claro
e a escuridão
lá dentro
pipocando
estrelas geniais


Luiz Antônio Solda


ciclovida


a
alma
é o
tempo
o
corpo
é o
espaço


a
alma
ocupa
o
corpo


espaço
e
tempo
se
completam


a
alma
deixa
o
espaço


o
corpo
deixa
o
tempo


Rui Werneck de Capistrano




alma gêmea


jamais imaginei a tua imagem
mas quando a vi reconheci
o tempo parado a esculpir
tua beleza que pede passagem


Antonio Thadeu Wojciechowski



Irene no Céu


Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.


Imagino Irene entrando no céu:
-Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
-Entra, Irene. Você não precisa pedir licença!


Manuel Bandeira
(1886/1968)




Uma alma de Dalton Trevisan


Texto 51, do livro 234


- Quando você pula do trampolim, um friozinho na barriga, sente que o corpo se separa da alma -e cai mais depressa que ela. Aos gritos de perdê-la pela boca aberta.


Dalton Trevisan