polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

domingo, março 05, 2006


FALAR ERRADO É UMA ARTE

O sucesso de Adoniran, a divulgação de suas músicas, se deve muito à atuação perfeita dos “Demônios da Garoa”. No mesmo ano em que gravaram Saudosa Maloca, também gravaram o Samba do Arnesto, cuja melodia e letra demonstram todo o cuidado das composições de Adoniran. O sambista descobre a si mesmo, sua melhor expressão e seus melhores intérpretes. Aos quarenta e cinco anos é um artista completo. Em um de seus depoimentos saiu com estas pequenas jóias: “Falar errado é uma arte, senão vira deboche”. “Eu sempre gostei de samba. Sou um sambista nato. Gosto de samba e pouco me importa se custaram a me aceitar assim. Implicavam com as minhas letras, com os nóis fumo, nóis vamu, nóis semu etc. etc... O que eu escrevo está lá direitinho no Bexiga. Lá é engraçado... o crioulo e o italiano falam igualzinho... o crioulo fala cantando...”
Às críticas que recebia Adoniran rebatia: "só faço samba pra povo. Por isso faço letras com erros de português, porque é assim que o povo fala. Além disso, acho que o samba, assim, fica mais bonito de se cantar."
"Alguém consegue encaixar Vila Alpina, Vila Nhocuné, Morumbi e Santo André em Samba? Não dá, reconheço. Mas gosto tanto da cidade que acabo dando um jeito".
Adoniran é considerado o compositor daqueles que nunca tiveram voz na grande metrópole.Além disso, foi uma das raríssimas coisas boas surgidas na MPB daquela desgraça abolerada que foi a década de 50 (a bossa-nova e seus precursores não vale, que foi bem no finzinho). Uma rara chama de lucidez e assepsia no meio de uma enxurrada de mau gosto, baixo-astral, dor-de-cotovelo, mortes e assassinatos por amor espalhados pela quase totalidade das canções.

Verdadeiro gênio da raça. Veja essas pequenas obras primas do humor e da linguagem popular.

A primeira, extraída de Pafúncia (os nomes das musas de Adoniran são um capítulo a parte):

O teu coração sem amor
se esfriou, se desligou,
até parece, Pafúncia,
aqueles elevador,
que está escrito "num funúncia"
e a gente sobe a pé!
e pra me judiar, Pafúncia,
nem meu nome tu pronúncia.

A outra vem da minimalista Tocar na Banda, uma verdadeira aula sobre Relatividade:

Num relógio é quatro e vinte
no outro é quatro e meia
é que de um relógio pra outro,
as hora vareia.

É ou não é um gênio?

Algumas de suas obras viraram verdadeiros hinos da boemia.


Saudosa Maloca

Se o senhor não tá lembrado, dá licença de contar
Ali onde agora está este adifício arto
Era uma casa véia, um palacete assobradado
Foi aqui seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca
Construimo nossa maloca
Mais um dia, nóis nem pode se alembrá
Veio os home com as ferramenta e o dono mandô derrubá
Peguemos todas nossas coisas e fumos pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia, cada táuba que caía
Doía no coração
Matogrosso quis gritar, mas por cima eu falei
Os home tá co'a razão, nóis arranja outro lugar
Só se conformemo quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor
E hoje nóis pega as paia nas grama do jardim
E pra esquecer nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde nóis passemo os dias feliz da nossa vida


Trem Das Onze

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã

Além disso mulher, tem outra coisa
Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
Sou filho único, tenho minha casa prá olhar
Não posso ficar, não posso ficar...


Que pena, Adoniram, que pena!