polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

domingo, março 05, 2006


Nasce uma estrela.

Três meses depois, um acordo pôs fim à revolução, mas seus efeitos, principalmente econômicos, se estenderam pelos dois anos seguintes pelo menos. João Rubinato estava literalmente fodido, não havia emprego nem bicos, mas isso não o incomodava nem um pouco, para desespero de seus pais, perplexos com a total irresponsabilidade do caçula. Mas no início de 1933, sua irmã Ainez convence seu marido, gerente da Seabra & Cia. a contratá-lo como vendedor. Se tivesse cabeça, João Rubinato iria arrumar sua vida com as polpudas comissões que ganharia com a venda de tecidos nobres.
Se tivesse. Um ano depois, estava no olho da rua e já não se chamava João Fortunato. Resolveu mudar. De um amigo pegou emprestado Adoniran e, em homenagem ao sambista Luiz Barbosa, adotou seu sobrenome. Assim nascia Adoniran Barbosa, o ator, cantor e compositor, criador de um samba tipicamente paulistano, que elaborava suas letras a partir das trágicas cenas de vida e da linguagem cheia de sotaques, gírias, inflexões e erros de habitantes de cortiços, malocas e bairros característicos da cidade, como Bexiga e Brás. "Pra escrevê uma boa letra de samba a gente tem que sê em primeiro lugá anarfabeto", dizia. Compôs seus primeiros sambas, Minha Vida se Consome, em parceria com Pedrinho Romano, e Teu Orgulho Acabou, com Viriato dos Santos, em 1933. Dois anos depois, ganhou o primeiro lugar em concurso carnavalesco organizado pela Prefeitura de São Paulo, com Dona Boa. Após passar por emissoras como São Paulo, Difusora, Cosmos e Cruzeiro do Sul, recebendo pequenos cachês, em 1941 foi para a Rádio Record, onde fez humorismo e rádio-teatro, e só sairia com a aposentadoria, em 1972. Lá, Adoniran conheceu o genial produtor Osvaldo Moles, responsável pela criação e pelo texto dos principais tipos interpretados por ele. Os dois trabalharam juntos durante 26 anos. No rádio, um dos maiores sucessos dessa parceria foi o programa "Histórias das Malocas", onde Adoniran representava o personagem Charutinho. O programa ficou no ar pela rádio Record até 1965, chegando a ter uma versão para a televisão. Os dois também dividiram a criação de vários sambas. Dessa união nasceram, entre outros clássicos, "Tiro ao Álvaro" e "Pafúncia". Foi estrondoso o seu sucesso como radialista cômico, interpretando uma série de personagens, baseados no linguajar coloquial, como o terrível e sábio aluno Barbosinha Mal-Educado da Silva, o negro Zé Cunversa, o motorista de táxi do Largo do Paissandu, Giuseppe Pernafina, o gostosão da Vila Matilde, Dr. Sinésio Trombone, o autor de cinema francês, Jean Rubinet, e o malandro malsucedido Charutinho. Com este último, uma das personagens do programa Histórias das Malocas, escrito pelo genial Oswaldo Moles, atingiu o clímax do humor e alcançou a popularidade máxima. "Trabaio é boca? Trabaio num é boca. É sepurtura, é tumo", falava Charutinho.
Mas Adoniran não foi apenas um compositor criativo, um excelente ator e um grande cronista popular. Para se ter a noção exata de sua dimensão e entender o que ele realmente foi e significou, é preciso muito mais que simplesmente perceber suas qualidades de artista, de marco da música popular brasileira, é preciso notar que a sua principal característica era a de ser transparente. Transparente o suficiente para que pudéssemos através dele e enxergar as ruas da cidade, os cortiços e a vida simples do povo se processando no silêncio,
nos acordes e nos versos de seus sambas. Filho dileto do Bexiga, o bairro italiano de São Paulo, Adoniran foi um fotógrafo lambe-lambe da canção. Cada uma delas é um pequeno retrato de seu bairro, de sua cidade, de sua gente humilde. Por extensão, retratos que poderiam ser de qualquer grande cidade que ainda tenha, em algum canto, um resquício daquela pobreza gentil que é tão diferente da miséria definitiva. A São Paulo de Adoniran é falsamente conformada com as agruras de ser grande - enorme - e faminta de seus filhos. Afinal, os homi tão com a razão/ nóis arranja outro lugar. A marca especial era aquele humor amargo, doído - o típico seria-trágico-se-não-fosse-cômico - encarnado em anti-heróis devorados pela cidade amada que crescia. Atropelados, despejados, arrastados por temporais, tentando reencontrar num canto de concreto a poesia perdida em alguma volta da vida. Venha ver,/ Venha ver, Eugênia:/ Como ficou bonito/ o Viaduto Santa Efigênia!. O humor que sabia tirar partido da desgraça. Porque lá no morro,/ quando a luz da Light pifa,/ a gente acende uma vela/ que alumia também/ se não tem/ não faz mar/ a gente samba no escuro/ que é muito mais legar. Afinal, o morro não quer protestar contra o progressio, quer é fazer parte dele. O problema é que o danado fica lá embaixo. Progréssio,/ Progréssio,/ eu sempre escuitei falar.
Tira de seu dia a dia idéias e personagens. Iracema, por exemplo, nasce de uma notícia de jornal - quando uma mulher foi atropelada na Avenida São João.
Foi um grande colecionador de amigos, com seu jeito simples de fala rouca, contador nato de histórias, conquistava o pessoal do bairro, os freqüentadores dos botecos onde se sentava para compor o verdadeiro samba de São Paulo, aquele que o Brasil inteiro sabe cantar.


Adoniran deixou cerca de 90 letras inéditas que, graças a Juvenal Fernandes (um estudioso da MPB e amigo do poeta), foram musicadas por compositores do quilate de Zé Keti, Luiz Vieira, Tom Zé, Paulinho Nogueira, Mário Albanese e outros. Está previsto para o dia 10 de agosto o paulista Passoca (Antonio Vilalba) lançar o CD Passoca Canta Inéditas de Adoniran Barbosa. As 14 inéditas de Adoniran foram zelosamente garimpadas entre as 40 já musicadas. Outra boa notícia é que entre os primeiros 25 CDs da série Ensaio (extraídos do programa de Fernando Faro da TV Cultura) está o de Adoniran em uma aparição de 1972.
A lembrança de Adoniran Barbosa não reside apenas em suas composições. Em São Paulo tem o Museu Adoniran Barbosa, localizado na Rua XV de Novembro, 347; há, no Ibirapuera, um albergue para desportistas que leva seu nome; em Itaquera existe a Escola Adoniran Barbosa; no bairro do Bexiga, Adoniran Barbosa é uma rua famosa e na praça Don Orione há um busto do compositor; Adoniran Barbosa é também um bar e uma praça; no Jaçanã existe uma rua chamada "Trem das Onze".

Tiro ao Álvaro

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece, sabe o quê?
Táubua de tiro ao álvaro, não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estriquinina
Que peixeira de baiano

Teu olhar mata mais
Que atropelamento de automóver
Mata mais que bala de revórver

Despejo na Favela

Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E contra o seu desejo
Entregou pra seu Narciso
Um aviso, uma ordem de despejo
Assinada "Seu Doutor"
Assim dizia a petição:
"Dentro de dez dias quero a favela vazia
E os barracos todos no chão"

É uma ordem superior
ô, ô, ô, ô, meu senhor
É uma ordem superior
Não tem nada não, seu doutor
Não tem nada não

Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não
Vou sair daqui
Pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema

Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito eu me ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás

Mas essa gente aí
Como é que faz?
ô, ô, ô, ô, meu senhor
Essa gente aí
Como é que faz?

Abrigo de Vagabundos

eu arranjei o meu dinheiro
trabalhando o ano inteiro
numa cerâmica
fabricando potes

e lá no alto da Moóca
eu comprei um lindo lote
dez de frente e dez de fundos
construí minha maloca

me disseram que sem planta
não se pode construir
mas quem trabalha
tudo pode conseguir

João Saracura
que é fiscal da Prefeitura
foi um grande amigo, sim
arranjou tudo pra mim

por onde andará
Joca e Matogrosso
aqueles dois amigos
que não quis me acompanhar?

andarão jogados na avenida São João
ou vendo o sol quadrado na detenção?

minha maloca,
a mais linda que eu já vi
hoje está legalizada
ninguém pode demolir

minha maloca
a mais linda deste mundo
ofereço aos vagabundos
que não têm onde dormir

Samba do Arnesto

O Arnesto nus convidô prum samba
ele mora no Brás ,
nóis fumo não encontremos ninguém.
Nóis vortemos cuma bruta duma réiva ,
da outra veis
nóis num vai mais!

No outro dia
encontremo co Arnesto
que pediu descurpa, mas nós num aceitemos.
Isso num se faz Arnesto,
nóis num se importa,
mais você devia
ter ponhado um recado na porta.

O breque falado tem várias versões, aí vão duas:

Anssim: Oia turma, não deu pra esperá. Aduvido que isso num faz mar e num tem importança.
De otra veis nóis te carça a cara!


anssim: "Ói, turma, num deu prá esperá
a vez que isso num tem importância, num faz má
depois que nóis vai, depois que nóis vorta
assinado em cruz porque não sei escrever Arnesto"
cais, cais, cais, cais, cais, cais, cais...