Suicídio
“Quem lhe dera o estilo do suicida no último bilhete” (Dalton Trevisan)
Morrer pode levar uma eternidade ou um piscar de olhos, daqueles que as pálpebras abaixam e não se levantam nunca mais. Mas o que leva um ser humano a tirar a própria vida? Por que alguns olham para dentro de si e só vêem sombras e assombrações, como se o corpo fosse um castelo povoado de fantasmas, gritos, correntes arrastando, paixões não resolvidas, intrigas, ódios, mágoas, sofrimentos sem fim? Dizem as línguas que todo suicida estrebucha por amor à vida e que por não poder vê-la ameaçada prefere morrer do que ver o seu sonho destruído. Romantismo, egolatria, covardia, masoquismo, sadismo, radicalismo, heroísmo? Na verdade, tudo isso e mais um pouco. Mas, leitor (a), como bem escreveu Maiakóvski, comentando o último poema de Iessênin (publicado abaixo): “nesta vida morrer não é difícil / o difícil é a vida e seu ofício”.
Suicídio qualificado
Sete palmos abaixo da baixaria,
a terra levemente me fechando,
o escuro iluminando minha última morada.
Vejo-me a ver-me como verme num corpo se decompondo,
este‚ o mais recorrente dos meus sonhos.
Na real, me angustia a demora do meu funeral.
A vida me tem sido um peso morto nos ombros,
não consigo passar no exame de um instituto médico legal.
Antonio Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos.
Levando fumo
quando eu morrer não quero choro nem oração
quero pacotes de holliwood
pra levar muito fumo no caixão
serrei até estourar a caixa torácica
o escarro e o pigarro eram a tática
pro meu pulmão não se esparramar pelo chão
cigarro de xepas do cinzeiro alheio eu fi-lo
traguei paióva, bituca e matarrato a quilo
eqüivalho a um quarteirão de nicotina e alcatrão
já enrolei tabaco pra mais de metro
se enfisema fizesse rei, eu tinha coroa e cetro
recordista filão, quebro a marca do milhão
há tosse e sinais defumantes em meu corpinho
alvéolos, brônquios, pleuras, não passam de toucinho
resoluto, baforo no caixão, meu último charuto
Antonio Thadeu Wojciechowski, Rodrigo Barros Homem Del Rei, Walmor Góes e Roberto Prado
Trecho da Divina Comédia, de Dante Alighieri
Chegamos a um bosque sem sinal de gente.
No entanto, ruídos humanos eram claros,
creio que Dante cria-me descrente.
“Arranque de uma árvore um de seus galhos!”
Isso fiz e manchei de sangue os dedos.
Eram suicidas que Deus, por bem, fez transformá-los,
pelo imperdoável auto-crime, em arvoredos.
Pena que, comparada às outras, pareceu-me branda.
“Não se iluda, entre os vivos jamais iremos vê-los.
No Juízo Final, todos terão a ficha branca,
exceto os justiceiros dos próprios corpos,
estes não reencarnarão no dia da balança.”
Livre adaptação de Antonio Thadeu Wojciechowski, Marcos Prado e Sérgio Viralobos.
Últimas palavras de Iessiênin, que suicidou-se no Hotel Inglaterra em Leningrado, no dia 28 de dezembro de 1925.
Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.
Sierguéi Iessiênin (Tradução de Augusto de Campos )
136, do livro Ah, é?
Qual o motivo, me diga, para matá-lo? Me presenteou uma camisola nova e uma samambaia. Ele me dava tudo, era cigarro, era calcinha de renda. Depois fez o que mais gostava: as unhas do meu pé. Foi a noite da despedida.
Um amorzinho bem gostoso. O despertador marcando as cinco. O revólver ali em cima da mesinha. Dormi e sonhei com um rio de água negra me levando.
Ele acende a luz, antes do relógio tocar. Pergunta se o trato ainda vale. Respondo que sim. Se um não pode ser do outro, o jeito é pôr um fim em tudo.
Aponta no ouvido esquerdo, sorri pra mim, aperta o gatilho. É a minha vez. O relógio dispara, um sinal de Deus. Vejo aquela sangueira, penso nos dois filhinhos, a vida é boa.
Dalton Trevisan
ainda não era hora
é preciso que se morra
mas que se morra aos poucos
devagar
dentro do horário
com cautela
sem onerar o erário
é preciso morrer
na disciplina protocolar
parar de respirar
sem nenhum comentário
morrer
é muito particular
Luís Antônio Solda
cansei de morrer
cansei de querer morrer
perdi a conta de quantos dias matei
não quero ser meu assassino
esse que agora assassinei
morto quem me matava, posso
agora ver como é bom matar alguém
que não me amava como eu gosto
dessa alegria de viver que vem
Marcos Prado(1962/1996)
Hoje não
Aos heróis do Telepaz
olhe, por exemplo, aquela flor
cor não existe
triste é a forma das ilusões
sólidos? líquidos? gasosos?
são tudo um estado de não
não há acima
e nenhum som
afasta o meio
do seu fim
as dimensões são uma
uma só senhora dor
um só solitário criador
não há ontem
e por falar de amor
e voltando àquela flor
hoje, não, hoje não
volte amanhã, por favor
Roberto Prado
Trecho do romance Sol e Aço, cujo autor cometeu o sepuko, o suicídio ritual da classe dos samurais japoneses (mais conhecido como haraquiri).
Nunca experimentei na ação física nada que se assemelhasse à satisfação arrepiante e aterradora proporcionada pela aventura intelectual. Nem senti nunca na aventura intelectual o calor impessoal, a cálida escuridão da ação física.
Em algum lugar, eles deve se encontrar. Onde, porém?
Em algum lugar, deve existir um território de encontro afim àquele reino supremo onde movimento torna-se repouso e repouso, movimento.
Suponha que eu agite meus braços. Ao fazê-lo, perco parte do sangue intelectual. Suponha que eu me permita, mesmo que por instante, a pensar antes de dar um golpe. Nesse momento, meu movimento está condenado ao fracasso.
Em algum lugar deve haver um princípio maior onde os dois se encontrem e façam as pazes.
Esse princípio maior, eu pensei, era a morte.
( Yukio Mishima, em tradução de Paulo Leminski )
Desse amor se vive, desse amor se morre.
Ela segura a faca, trêmula. Olha-se no espelho, vê-se descabelada, triste, fraca, exaurida. Não vê a hora de acabar com tudo. Tenta mais uma vez o telefone, nada. Tenta o telefone do Zito, ele não está em casa, deixa recado na secretária, quase um pedido de socorro. Liga para Tânia, sua melhor amiga, e um de seus filhos diz que ela está no banho. Desespera-se, vai até o banheiro e engole todos os comprimidos de diazepan que o médico lhe indicara para insônia. Não demora muito, tonteia, cambaleia, cai, levanta, vai até a mesa, enche um copo com whisky e vira. Toma outro, mais rápido ainda. Olha para o retrato sob o balcão da sala e se lança em fúria contra ele. Joga-o ao chão, estilhaçando o vidro que protegia a foto. Com ela na mão, acalma-se por uma fração de segundo. Olha-a como se visse o fantasma de uma felicidade perdida.
Se enfurece. Esfaqueia dezenas de vezes o noivo que sorri abraçado a ela.
Enlouquecida, quebra tudo que encontra pela frente, até ser detida pela completa exaustão. Cai sobre o sofá, o olhar parado, segura firmemente a faca. Nem sente quando ela rasga a carne de seus pulsos. Mas ao sentir o sangue quente escorrendo sobre seu corpo, desmaia.
Volta a si muito depois. O sofá e o chão, vermelhos, tenta levantar, mas cai. As luzes acendem, apagam, giram, tremulam. Ela rasteja, quer gritar, quer pedir socorro, quer alguém, mas só o silêncio sai de sua boca imóvel.
Tudo escurece, tudo vai, tudo volta. Ainda pensa nele mais uma vez. Tenta, num último esforço, abrir os olhos, mas é como se eles já não lhe pertencessem.
Capítulo do livro Assim até eu de Antonio Thadeu Wojciechowski
7 Comentários:
Bah, essa é de tirar uruca. Muito bom.
Júlio Okada
Só não me suicido pq não tenho vocação para o fracasso.
Kimberli
Se eu me suicidasse minha mãe ia chorar pro resto da vida. Por isso acho melhor eu continuar vivar.
Rosa Brugnera
Crêndios padre, Rosa!
Essa dá vontade de viver mais intensamente ainda.
Ana Maria Ribeiro
Gostei, Tadeu. Bons poemas, boas entrevistas. Muito interessante.
Ênio Ribeiro
Valeu, Ênio, grande abraço.
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