polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

domingo, novembro 13, 2005


Suicídio

“Quem lhe dera o estilo do suicida no último bilhete” (Dalton Trevisan)
Morrer pode levar uma eternidade ou um piscar de olhos, daqueles que as pálpebras abaixam e não se levantam nunca mais. Mas o que leva um ser humano a tirar a própria vida? Por que alguns olham para dentro de si e só vêem sombras e assombrações, como se o corpo fosse um castelo povoado de fantasmas, gritos, correntes arrastando, paixões não resolvidas, intrigas, ódios, mágoas, sofrimentos sem fim? Dizem as línguas que todo suicida estrebucha por amor à vida e que por não poder vê-la ameaçada prefere morrer do que ver o seu sonho destruído. Romantismo, egolatria, covardia, masoquismo, sadismo, radicalismo, heroísmo? Na verdade, tudo isso e mais um pouco. Mas, leitor (a), como bem escreveu Maiakóvski, comentando o último poema de Iessênin (publicado abaixo): “nesta vida morrer não é difícil / o difícil é a vida e seu ofício”.

Suicídio qualificado

Sete palmos abaixo da baixaria,
a terra levemente me fechando,
o escuro iluminando minha última morada.
Vejo-me a ver-me como verme num corpo se decompondo,
este‚ o mais recorrente dos meus sonhos.
Na real, me angustia a demora do meu funeral.
A vida me tem sido um peso morto nos ombros,
não consigo passar no exame de um instituto médico legal.

Antonio Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos.

Levando fumo

quando eu morrer não quero choro nem oração
quero pacotes de holliwood
pra levar muito fumo no caixão

serrei até estourar a caixa torácica
o escarro e o pigarro eram a tática
pro meu pulmão não se esparramar pelo chão

cigarro de xepas do cinzeiro alheio eu fi-lo
traguei paióva, bituca e matarrato a quilo
eqüivalho a um quarteirão de nicotina e alcatrão

já enrolei tabaco pra mais de metro
se enfisema fizesse rei, eu tinha coroa e cetro
recordista filão, quebro a marca do milhão

há tosse e sinais defumantes em meu corpinho
alvéolos, brônquios, pleuras, não passam de toucinho
resoluto, baforo no caixão, meu último charuto

Antonio Thadeu Wojciechowski, Rodrigo Barros Homem Del Rei, Walmor Góes e Roberto Prado

Trecho da Divina Comédia, de Dante Alighieri

Chegamos a um bosque sem sinal de gente.
No entanto, ruídos humanos eram claros,
creio que Dante cria-me descrente.

“Arranque de uma árvore um de seus galhos!”
Isso fiz e manchei de sangue os dedos.
Eram suicidas que Deus, por bem, fez transformá-los,

pelo imperdoável auto-crime, em arvoredos.
Pena que, comparada às outras, pareceu-me branda.
“Não se iluda, entre os vivos jamais iremos vê-los.

No Juízo Final, todos terão a ficha branca,
exceto os justiceiros dos próprios corpos,
estes não reencarnarão no dia da balança.”

Livre adaptação de Antonio Thadeu Wojciechowski, Marcos Prado e Sérgio Viralobos.

Últimas palavras de Iessiênin, que suicidou-se no Hotel Inglaterra em Leningrado, no dia 28 de dezembro de 1925.

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

Sierguéi Iessiênin (Tradução de Augusto de Campos )

136, do livro Ah, é?

Qual o motivo, me diga, para matá-lo? Me presenteou uma camisola nova e uma samambaia. Ele me dava tudo, era cigarro, era calcinha de renda. Depois fez o que mais gostava: as unhas do meu pé. Foi a noite da despedida.
Um amorzinho bem gostoso. O despertador marcando as cinco. O revólver ali em cima da mesinha. Dormi e sonhei com um rio de água negra me levando.
Ele acende a luz, antes do relógio tocar. Pergunta se o trato ainda vale. Respondo que sim. Se um não pode ser do outro, o jeito é pôr um fim em tudo.
Aponta no ouvido esquerdo, sorri pra mim, aperta o gatilho. É a minha vez. O relógio dispara, um sinal de Deus. Vejo aquela sangueira, penso nos dois filhinhos, a vida é boa.

Dalton Trevisan

ainda não era hora

é preciso que se morra
mas que se morra aos poucos
devagar
dentro do horário
com cautela
sem onerar o erário
é preciso morrer
na disciplina protocolar
parar de respirar
sem nenhum comentário
morrer
é muito particular

Luís Antônio Solda

cansei de morrer

cansei de querer morrer
perdi a conta de quantos dias matei
não quero ser meu assassino
esse que agora assassinei

morto quem me matava, posso
agora ver como é bom matar alguém
que não me amava como eu gosto
dessa alegria de viver que vem

Marcos Prado(1962/1996)

Hoje não

Aos heróis do Telepaz

olhe, por exemplo, aquela flor
cor não existe
triste é a forma das ilusões
sólidos? líquidos? gasosos?
são tudo um estado de não
não há acima
e nenhum som
afasta o meio
do seu fim

as dimensões são uma
uma só senhora dor
um só solitário criador
não há ontem
e por falar de amor
e voltando àquela flor
hoje, não, hoje não
volte amanhã, por favor

Roberto Prado

Trecho do romance Sol e Aço, cujo autor cometeu o sepuko, o suicídio ritual da classe dos samurais japoneses (mais conhecido como haraquiri).

Nunca experimentei na ação física nada que se assemelhasse à satisfação arrepiante e aterradora proporcionada pela aventura intelectual. Nem senti nunca na aventura intelectual o calor impessoal, a cálida escuridão da ação física.
Em algum lugar, eles deve se encontrar. Onde, porém?
Em algum lugar, deve existir um território de encontro afim àquele reino supremo onde movimento torna-se repouso e repouso, movimento.
Suponha que eu agite meus braços. Ao fazê-lo, perco parte do sangue intelectual. Suponha que eu me permita, mesmo que por instante, a pensar antes de dar um golpe. Nesse momento, meu movimento está condenado ao fracasso.
Em algum lugar deve haver um princípio maior onde os dois se encontrem e façam as pazes.
Esse princípio maior, eu pensei, era a morte.

( Yukio Mishima, em tradução de Paulo Leminski )


Desse amor se vive, desse amor se morre.

Ela segura a faca, trêmula. Olha-se no espelho, vê-se descabelada, triste, fraca, exaurida. Não vê a hora de acabar com tudo. Tenta mais uma vez o telefone, nada. Tenta o telefone do Zito, ele não está em casa, deixa recado na secretária, quase um pedido de socorro. Liga para Tânia, sua melhor amiga, e um de seus filhos diz que ela está no banho. Desespera-se, vai até o banheiro e engole todos os comprimidos de diazepan que o médico lhe indicara para insônia. Não demora muito, tonteia, cambaleia, cai, levanta, vai até a mesa, enche um copo com whisky e vira. Toma outro, mais rápido ainda. Olha para o retrato sob o balcão da sala e se lança em fúria contra ele. Joga-o ao chão, estilhaçando o vidro que protegia a foto. Com ela na mão, acalma-se por uma fração de segundo. Olha-a como se visse o fantasma de uma felicidade perdida.
Se enfurece. Esfaqueia dezenas de vezes o noivo que sorri abraçado a ela.
Enlouquecida, quebra tudo que encontra pela frente, até ser detida pela completa exaustão. Cai sobre o sofá, o olhar parado, segura firmemente a faca. Nem sente quando ela rasga a carne de seus pulsos. Mas ao sentir o sangue quente escorrendo sobre seu corpo, desmaia.
Volta a si muito depois. O sofá e o chão, vermelhos, tenta levantar, mas cai. As luzes acendem, apagam, giram, tremulam. Ela rasteja, quer gritar, quer pedir socorro, quer alguém, mas só o silêncio sai de sua boca imóvel.
Tudo escurece, tudo vai, tudo volta. Ainda pensa nele mais uma vez. Tenta, num último esforço, abrir os olhos, mas é como se eles já não lhe pertencessem.

Capítulo do livro Assim até eu de Antonio Thadeu Wojciechowski

7 Comentários:

Às 13 novembro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Bah, essa é de tirar uruca. Muito bom.

Júlio Okada

 
Às 13 novembro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Só não me suicido pq não tenho vocação para o fracasso.

Kimberli

 
Às 13 novembro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Se eu me suicidasse minha mãe ia chorar pro resto da vida. Por isso acho melhor eu continuar vivar.

Rosa Brugnera

 
Às 14 novembro, 2005 , Blogger polacodabarreirinha disse...

Crêndios padre, Rosa!

 
Às 14 novembro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Essa dá vontade de viver mais intensamente ainda.

Ana Maria Ribeiro

 
Às 15 novembro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Gostei, Tadeu. Bons poemas, boas entrevistas. Muito interessante.


Ênio Ribeiro

 
Às 15 novembro, 2005 , Blogger polacodabarreirinha disse...

Valeu, Ênio, grande abraço.

 

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