polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

sexta-feira, junho 09, 2006

limites


Ao Tiago (1980-1980), filho falecido de Roberto Prado ( Beco) e Liliane, e à Marília,
ex-namorada e amiga atualmente.

sou só água de represa
querida menina
água que não se agüenta comportada
e por isso não se alheia ao sol

hoje, bem hoje,
é que me divido aqui:
coração nublado de infinito
só pra não te oferecer
um novo compasso de espera

querida menina
conto a história das calçadas
conto ainda
que sou água de represa que
evaporou
o chão nublado infinitamente
chuva

eu, lágrimas de teus olhos?
claro que não, querida menina,
um dia sem mágoas na lagoa da alma
por certo
dia de permanecer em nenhuma ferida

tomo tua mão e nem sinal ou sede
nada que não seja o próprio líquido
capaz de movimentar a noite ociosa
dentro de nosso sapato furado

apressa o passo, querida menina,
se não quer me ver molhar de sangue
todos os punhais de meus versos

sabe de uma coisa, querida menina,
sou capaz de suportar a escuridão do bairro
enquanto vou passando
como quem vai passando e vê postes
e quebra as lâmpadas
e não consegue a rua mais escura

quando saio, à noite
olho bastante comovido para o meu bairro.
meu coração perdoa mais uma vez
quando caminho quebrando lâmpadas
pra sentir mais intenso o brilho das estrelas

no entanto, as luzes sempre acesas denunciam:
é mentira a história das pedras
ou a eficácia da comunicação
chega ao ponto de trocar a lâmpada
antes mesmo que eu a quebre

porém, estão acesas as luzes do meu bairro.
encosto no poste, escrevo um poema
e quebro a lâmpada que nunca faltou
no meu bairro repleto de lâmpadas
i n q u e b r á v e i s

luz?
só a que está no pensamento:
eu entretendo meu corpo no teu
num piso de estrelas
e de ruas de lâmpadas quebradas

é bem possível que eu não tropece
em nenhuma pedra, querida menina

nunca houve queixa de meus vizinhos
que nunca se queixam
mesmo quando além das lâmpadas
eu ainda quebro-lhes as vidraças

são generosos os meus vizinhos
que nunca se queixam
das lâmpadas ou das vidraças

hoje quando vim de tua casa
as luzes estavam acesas no meu bairro
antes de entrar em casa e dormir
olhei como quem olha e transmite uma séria ameaça:
ser o impossível em tudo que já aceso

entro como quem entra em casa
mas fica na rua observando as lâmpadas
e a segunda parte de um novo sonho:
uma estrela bem ali verdadeira nasce
( a mais curta duradoura graça de uma saudade)

Tiago indo e vindo
não é pedra de quebrar lâmpadas
Tiago vem como um cometa
e não nega à vida a luz da compreensão
que substitui a dor de sua falta física

ontem quando inauguraram a iluminação
de um bairro distante,
a estrela que tinha luz fraquinha desapareceu
daí pensei: quando iluminarem todos os bairros
vou ter poucas estrelas no céu

Tiago não
Tiago tem todas
Béco e Liliane mais que ninguém sabem
que o abraço persiste onde já não existe braço
e supera o além na umidade dos olhos

lá de casa é que senti:
a distância não dá sossego
quando se mora num bairro de lâmpadas
plof !
todas as cinzas apodrecendo nas frestas
de uma eterna semana coagulada

daí a noite escura se solta
e reaparece uma estrela dolorida
bem ali
no sopro selvagem de um brilho
postiço dentro da sombra do planeta

querida menina,
o contido é o que me foge à lembrança
mas não tenho remorsos e nem dores
por ser o carrasco das lâmpadas
no bairro onde moro escuro
pra ser amável às estrelas

não demora muito depois que eu deito para amanhecer

vais entrando dentro de mim
querida menina
no abandono de mim
sol que me evapora e me chove
distante da possibilidade de outra represa

tem dias que eu penso
que a gente devia ter casado
e ido morar sobre uma estrela
dessas que parecem estar falando
com o coração da gente

viveríamos nela com tempo para conversar
sobre todas as coisas boas
que tanto desejamos ao mundo e às pessoas

a gente viveria nela igualzinho a passarinho
que dá ao ar o ar de sua graça
para ter luz de sol na cortina do quarto

mas não demora muito depois que eu deito
para amanhecer e lembrar que lá no porão
não tem nada não
só o mesmo insignificante rato roendo
a roupa do rei que rói as ruas do reino

um porão e uma estrela
minha casa e algumas lâmpadas quebradas
no chão de meu bairro
minha cidade
meu país

em cacos

( meu silêncio é responsável)

masco teu beijo
querida menina
como chicletes:
sol que engulo afoito

no entanto
finjo que durmo
mas não sem antes quebrar
a lâmpada do quarto

em cacos

Antonio Thadeu Wojciechowski (1980)

10 Comentários:

Às 09 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Que maravilhoso, Thadeu. Juro que chorei de emoção.

Grande beijo


Leila Amaral

 
Às 09 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Parece que foi feito hoje. Muito bom mesmo e como parece atual. Você é surpreendente Thadeu.

Grande abraço

Flávio Scoretto

 
Às 09 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Mais que lindo, emocionante. Mais que emocionante, dramático. Mais que dramático, trágico. Mais que trágico, a vida.

Beijos

BB

 
Às 09 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Dae? Que porrada hein meu? Sensacional, véio.


Dalton Cunha

 
Às 10 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Que raciocínio, hein? Que viagem, Polaco! Belo poema. Vc é muito louco.

Fabiano

 
Às 11 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Maravilha.

Jorge Azevedo

 
Às 11 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Lindo e muito comovente, Thadeu.


Maria Luíza

 
Às 11 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Triste mas belíssimo.

Roberto Trompowski

 
Às 11 junho, 2006 , Anonymous Anônimo disse...

Oi Thadeu, já estou aqui no Japão e trabalhando que nem louco. Vou divulgar seu endereço para outros brasileiros que estão aqui, estou me ambientando ainda. Parabéns por Limites.

Grande abraço do Júlio Okada.

 
Às 20 agosto, 2006 , Blogger Marília Côrtes disse...

Querido Thadeu. Adorei ler novamente esse seu belíssimo poema. Proporcinou-me ardorosas lembranças. Um beijo com carinho e saudades. Marília.

 

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial