polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

quarta-feira, setembro 21, 2005

Saudade não tem idade

Saudade.


Eis aí uma coisa que você só tem quando não tem. E vem quando você vai do presente para algum lugar do passado. Um saudoso poeta nos disse, um dia desses, que tinha saudades do futuro. Isso é fácil de entender, é só ver o caos, a ladroagem, a deselegância e predação que hoje infestam a Terra. Mas o tempo vai passar e muita gente vai acabar sentindo saudades e dizendo “bons tempos aqueles”. Uma só pazada de saudade enterra mais de um. E “morrer de saudades” não é só maneira de dizer. “Banzo” foi o nome da doença da saudade que entre os escravos fez muitos estragos, no Brasil colonial, quando enlouqueceu e matou milhares deles. Nos EUA, o mesmo banzo deu origem ao rhythm-and-blues, que gerou os vários rocks, que também são de morte. O “spleen” era a nostalgia importada pelos ultra-românticos brasileiros e que matava de tuberculose antes dos poetas terem do que sentir saudades de verdade. Que saudades dá da professorinha do Ataulfo Alves quando escutamos as letras de música que estão na mídia de hoje em dia, onde “saudade” virou sinônimo de desilusão amorosa infanto-juvenil em seu estado mais bruto. Por não ter tradução em outros idiomas, a palavra saudade é só do Brasil e de nós, pobres brasileiros que, talvez por isso mesmo, sempre ficamos mesmo na saudade.


Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto,/ E hoje, quando me sinto,/ É com saudades de mim.
Mário de Sá Carneiro (1890-1916)


Meus oito anos

Oh! Que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!/ Que amor, que sonhos, que flores,/ Naquelas tardes fagueiras/ À sombra das bananeiras,/Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu (1839-1860)



enquanto o quando não vem

quando teus olhos
retornarem
eu quero a impressão
de tuas estrelas

em minha mão

quando teus ouvidos
regressarem
eu quero a intenção
de minhas estrelas

em tua mão

quando teus lábios
falarem
com os meus
eu quero a constelação

uma única estrela
em nossa mão

Antonio Thadeu Wojciechowski




Uma saudade a la Paulo Leminski

tão longe eu lhe disse até logo
um pouco de tudo passou-se outra vez
e foi uma vez toda feita de jogos
aquela outra vez que não soube ser vez
pois voltou e voltou e voltou
sem saber que de duas uma
nunca são três

Paulo Leminski ( 1944-1989)



saudades da lancheira

onde andam vocês, bolachas maria ?
amiguinhos toddys
cream crackers piraquê
por que me abandonaram ?
venham, duchens
voltem, zequinhas
bidu-cola, crush e mirinda
apareçam antes que eu morra pela boca cheia de formiga

Marcos Prado e Édson de Vulcanis




Saudade do Chapéu

meu chapéu dormiu triste
ouvindo Cartola
acho que o Cardoso ainda existe

(Obs.: Alberto Cardoso: poeta falecido em 1994 e que, como Marcos, usava chapéu)

Marcos Prado (1961-1996)



20 anos em 2 fragmentos de saudade

Poema de 1999
(...)
Causar saudade é próprio de quem parte
para viver além deste mundo
ou no Alto da Glória esconder-se,
onde tua poesia é mensagem de marte
que apesar do traço fecundo
em vão aspira com a vida entender-se.

Poema de 1979
(...)
menos que foi
mais que é
mais que menos que foi
nada mais

Roberto J. Bittencourt



Saudade Rastafari

Jah, rei dos reis e de todos os reinos
jah criou e fez nossos caminhos
o homem branco chegou
e me levou embora da minha terra querida
me levou para uma terra de exílio
e tirou de mim até minha alma
não vou mais cantar canção nenhuma
nesta terra medonha
e se eu quiser esquecer esta agonia
é melhor esquecer que vim pra cá

Canção foclórica da Jamaica (Versão de Luís Antônio Solda)



o que tanto você lembra?

Lembra? Claro que lembra, era aquela,
aquela mesmo, lembrou?
Ah! Não!
Vai dizer que esqueceu
justo aquela uma
que praticamente a gente morou?
Aquela uma lá, que representa o tipo
de uma estradinha,
aquela lá lá, perto do armazém da Dona Coisinha,
logo ali,
que antes era tão longe.


Roberto Prado





Acalanto para as mães que perderam o seu menino

Dorme, dorme, dorme...
Quem te alisa a testa
Não é Malatesta,
Nem Pantagruel
- O poeta enorme.
Quem te alisa a testa
É aquele que vive
Sempre adolescente
Nos oásis mais frescos
De tua lembrança.

Dorme, ele te nina.

Te nina,. te conta
Sabes como é –
Te conta a experiência
Do vário passado,
Das várias idades.
Te oferece a aurora
Do primeiro riso.
Te oferece o esmalte
Do primeiro dente.

A dor passará,
Como antigamente
Quando ele chegava.
Dorme...Ele te nina
Como se hoje fosses
A sua menina.

Manuel Bandeira (1886-1968)



Confidência do Itabirano

(...)

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)



Maikóvski: uma saudade aos pedaços

Uma da madruga, você deve estar na cama.
Daqui, a Via Láctea é um rio de prata.
Não tenho pressa. Para que acordá-la
com o relâmpago de mais um telegrama?
Como se diz: o caso está encerrado.
A canoa do amor encalhou no cotidiano.
Estamos quites, inútil o apanhado.
Da mútua dor, mútua cota de dano.
Vê como tudo agora emudeceu?
Que tributo de estrelas a noite impôs ao céu!
Em horas como esta eu me ergo e converso
com os séculos, a história, o universo.

Wladímir Maiakóvski




Que saudade de Emily Dickinson!

Tive uma Jóia nos meus dedos
E adormeci.
Quente era o dia, tédio os ventos.
“- É minha”, eu disse.

Acordo e os meus honestos dedos
(Foi-se a gema) censuro.
Uma saudade de ametista
É o que possuo.


Emily Dickinson ( EUA, 1830-1886)



Saudade por Dalton Trevisan

61 do livro 234.

Saudade. O aperto da mão de uma sombra na parede.

104 do livro 234.

Velho: uma caneca trincada de louça, o nome Saudade quase apagado.



Infância

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se “Agora”.


Guilherme de Almeida (1890-1969)

4 Comentários:

Às 21 setembro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

É isso mesmo, saudade dá um tranco na alma da gente e empurra o coração pra cima. É como se a gente vivesse o mesmo sentimento várias vezes. Gostei muito dos textos, especialmente o do Tadeu. Muito bonito e verdadeiro.

Saudações

Beto Boqueirão

 
Às 21 setembro, 2005 , Blogger Ivan disse...

Ficou na saudade o tradutor de Emily Dickinson: foi você mesmo, Thadeu?

 
Às 21 setembro, 2005 , Blogger Ivan disse...

E também do "Maikóvski" (sic): quedê o crédito da tradução?

ou em bom russo: QIDHVRSKRIÉDITCHIDVSTRADSKIANIÊPANIMÁIO?

 
Às 26 setembro, 2005 , Blogger polacodabarreirinha disse...

Não, foi esquecimento mesmo, Ivan. Os tradutores são os irmãos Campos.

Thadeu

 

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial