polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

quarta-feira, setembro 14, 2005

Eu, aliás, nós



Eu, aliás, nós

“eu sou como eu sou
pronome pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível”


Torquato Neto (1944-1972)


De mim ou doeu?

Roberto J. Bittencourt



A principal causa mortis no trânsito da vida são os Egos desgovernados. Deveríamos afixar out-doors gigantescos anunciando em letras garrafais: “Não faça de seu Eu um arma. A vítima pode ser você.” Mas isso não significa que você precisa sair por aí matando, esfolando, roubando, mentindo só para não se sentir diferente dos outros.
Entre o seu Eu selvagem e a solitária multidão, sem rosto, anônima, que escoa fluvialmente pelas ruas do mundo, pode existir um Nós. Para isso mesmo, inventamos as virtudes. A escolha é pessoal, ser Adolf Hitler ou Madre Tereza, ter amigos de verdade ou fazer parte de uma gangue, que nada mais é do que a soma das piores partes de cada ego.
De tanto que dizemos “eu acho que”, no Brasil criou-se o Achismo, a primeira ciência inexata do mundo. Um adepto do achismo não precisa provar nada, nem apresentar referências nem mesmo ter a intenção de ajudar alguém ou resolver alguma coisa. Pessoalmente, eu acho que essa gente não vale nada.
Mas ainda bem que EU é obra-prima de Augusto dos Anjos, o livro de poesia mais vendido, mais lido e mais amado da língua portuguesa. É como eu sempre digo, nós, brasileiros, também podemos ser muito virtuosos. Só falta amar o próximo como a nós mesmos.


5 egolatrias pantaneiras

1.
Eu queria crescer pra passarinho....

2.
Choveu de noite até encostar em mim.
O rio deve estar mais gordo.

3.
O frio se encolheu nos passarinhos.
Ó noite congelada de jacintos!
Eu estou transida de pétalas.

4.
Uma violeta me pensou.
Me encostei no azul de sua tarde.

5.
Hoje completei 10 anos.
Fabriquei um brinquedo com palavras,
minha mãe gostou.
É assim: De noite o silêncio estica os lírios.

Manoel de Barros


Espelho rebelde

Eu também queria ser um sábio.
Velhos livros assim o descrevem:
Das rixas do mundo passa ao largo
E o tempo como os que não o temem.
Entra em ação sem violência,
Paga o mal com benevolência.
Sem essa de desejos,
É sábio pois esquecê-los.
Porém, isso ainda não consigo!
A realidade é cruel e estou vivo.

Bertolt Brecht (Alemanha, 1898-1956)
Livre adaptação de Antonio Thadeu Wojciechowski



Dalton Trevisan é nós.
(Excertos do livro 234)

1.
O anjinho embebe de gasolina um, dois, três sapos dos grandes. Risca o fósforo. E baba-se de gozo com as bolas de fogo saltadoras.

2.
Em cada esquina de Curitiba um Raskolnikov te saúda, a mão na machadinha sob o paletó.

3.
Na cama, diz o marido:
- Você é gorda, sim. Mas é limpa.
- ...
- Você é feia, certo? Mas é de graça.

Dalton Trevisan


Musas

anos a fio dando ouvidos
a deuses muito discretos

amigas, amigos, amiguinhos
se sou mero objeto de meus afetos
quem é aquilo sozinho que vai
tropeçando em meus versinhos?

Roberto Prado


Não tem pra ninguém

desse cafezinho
como posso gostar tanto?
desse cigarrinho
como não filtrar só encanto?

dessa vidinha
atiro as pedras que o caminho tiver
dessa alminha
meu corpo faz o que bem quiser

Antonio Thadeu Wojciechowski


deus escreveu melhor do que eu

pudera eu amasse como se não
flor crescesse onde passasse deserto
quem sou eu pra enfeitar o pavão?
só o nascer do sol boquiaberto
quero olhar como eu era
quando vi pela primeira vez a primavera

Antonio Thadeu Wojciechowski e Roberto Prado


eu por mim

às vezes penso eu
o que vão pensar de mim
se até hoje ninguém me entendeu
posteridade não dará cartaz a mim
quem hoje me comoveu
amanhã faz chacota de mim
não era nero e sim eu
o gênio que fui só pra mim
acreditei que o mundo era meu
tudo tinha sido feito pra mim
não fui só o bonzinho que se fodeu
mas todo mundo chorou por mim
às vezes penso que morreu
aquele que eu chamei de mim

Antonio Thadeu Wojciechowski, Marcos Prado e Roberto Prado.



você bem que podia

Pintei o sete do dia-a-dia
Lambuzado até os tubos de tinta
E entreguei de bandeja, vazia,
A cara de uma caravela extinta

Das asas de um escaravelho de ouro
Me chamam pra ser criança de novo

E agora que são elas, sujeito,
Você bem que podia, aos outros,
Soprar um chorinho brejeiro
na flauta transversal dos esgotos!

Vladimir Maiakóvski (Rússia, 1893-1930)

Livre-adaptação de Antonio Thadeu Wojciechowski, Roberto Prado e Ubiratan Gonçalves de Oliveira)



Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos (1884-1914)


Eu por nós

o que aprendi com os amigos
não reneguei nem esqueci
não me acho o melhor dos vivos
a até hoje, que eu saiba, não morri

aprendi, sim, e com maestria
dos todos que até hoje encontrei
o amor pelo que chamam poesia
que é hoje tudo que tenho e sei

imaginei-me ontem o pior de todos
porque almejo algo acima do solo
como se em meu cérebro eletrodos
me jogassem dos 34 anos para o colo

hoje, porém, nascendo o dia azul
olhei pela janela e tudo amarelo –
havia em mim uma espécie de exul
tação aos amigos, à poesia, ao belo

Marcos Prado (1961-1996)


contranarciso

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

Paulo Lemiski (1944-1989)



Eu?

lá em cima o céu
e eu aqui
embaixo do meu chapéu

Luís Antônio Solda


Eu em nós

1
eu sou uma consoante
não sei soar sem você
minha vogal

2
no peito da estrela
uma constelação

Alberto Centurião de Carvalho

1 Comentários:

Às 15 setembro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Fora de série. Tenho acompanhado esse blog, graças à boa indicação do Prof. Rui Miranda, e, cada vez mais, admiro a qualidade dos textos apresentados. Continuem assim.

Hélio de Souza

 

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