polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

domingo, abril 19, 2009

Acabou-se o que era doce.
.
Estourei a quantidade permitida de posts. Então, fim. Rei morto, rei posto. Em primeiro de maio de 2009, inauguro oficialmente o novo POLACO DA BARREIRINHA. Com tudo surpreendentemente diferente. Inclusive endereço que passará a ser polacodabarreirinha.wordpress.com
Até lá.
,
Polaco da Barreirinha
.

quarta-feira, abril 15, 2009


VALE A PENA LER DE NOVO



Os Bêbados Amam Demais



Uma novelha de Antonio Thadeu Wojciechowski






Capítulo 1

Essas coisas só acontecem comigo.


Dia desses, andando no cu da madrugada,
Tão bêbado, trôpego, triste e comovido,
Que imaginei estar sofrendo na lombada
Todas as dores deste mundo sem sentido.

O céu ía alto. Na rua, um asfalto de merda
Ampliava os riscos de eu me esborrachar no chão,
Mas, na hora, sem saber de nada disso, achei certa
A decisão de ir em frente e, quer queira ou não,

Com bêbado não se discute, ainda mais quando
Ele é você mesmo. Assim, nós, ou melhor, eu,
Saí a procurar um bar aberto e, fumando,
Já nem me lembrava do que me aborreceu.

O bairro Barreirinha é grande e escuro.
Tateando, investigando, perscrutando, achei.
No fundo do quintal, o barraco, sem muro,
Era simples e aconchegante. Nem pensei.

Pedi logo duas, pra não ter que esperar
Trazerem outra quando a primeira acabar.
Sentado, bebendo e fumando, não vi a hora
Passar. É engraçado ver isso tudo agora!
.
Eu, na maior deprê, sem ter para onde ir,
Me julgando o borrabosta mor da cidade,
Estava ali tranqüilo, tomando uma beer,
Queimando um Marlboro em total felicidade.

Mas se uma tempestade não dura pra sempre;
A paz também já nasce com o umbigo roxo.
Na mesa ao lado, um beberrão, completamente
Louco, ergue-se e me acerta, em cheio, um soco.

Doeu mais a ofensa que o direto, porém,
Enfiei-lhe a mão na cara, sem perdão nenhum.
O dono do bar entrou na briga, também,
E o bafafá virou um borobodó...hummm!

Meu Deus! Todo mundo dando porrada, bem
Pra caralho. Até um gaguinho, meio picego,
Entra na dança, vem pra cima de mim sem
A menor cerimônia e vai como um prego.

Deu dó, foi um tombo só. Dei-lhe uma rasteira,
Coisa linda de ver! Horizontalizei
No ar o filho da puta, que caiu, sem eira
Nem beira, gritando “le-le-vi-vi-vi-tei!"



Capítulo 2


A divina comédia



Por alguns poucos instantes nada se fez,
O gago falar sem gaguejar bateu fundo,
Como se o milagre fosse o fato da vez.
E nada mais interessasse nesse mundo.
O acontecimento de tão inusitado
Nocauteou a todos e tudo ficou parado.

Suspensos no ar, olhávamo-nos, admirados,
Tempo que se não me falha a memória deu
Para ver se eu ainda estava com dois bagos
E conferir nos documentos se Thadeu
Era ainda meu nome e estava mesmo ali.
“Fi-fi-filho da pu-puta!” Súbito, ouvi.

O que se seguiu então foi o fim do milagre.
Ato contínuo, se voltaram contra mim,
Todos, sem exceção. Mas eu, mais liso que bagre
Besuntado: “Isso não vai ficar assim!”
Comecei a arrumar as cadeiras no lugar
E fui imitado pelo dono do bar.

“Ok, pessoal, acabou!” Olhou, de cima em baixo,
pra mim e disse “Você paga cinco casco!”
“Cinco cascos?” Retruquei. Ele: “Agora, seis!
E não se fala mais nisso! Bebam, vocês!
Chega de merda, se não eu fecho essa porra!”
Falou, como se estivesse com a cachorra.

E foi obedecido instantaneamente.
O gago me olhou como se quisesse mais,
Pegou um copo e virou para um cara em frente,
Que me analisava e ignorava os demais.
Revidei com meu olhar exterminador,
Que o atravessou e foi parar no agressor.

A cara do lazarento já dizia tudo:
Estava para o crime, o filho da puta.
Pedi mais duas e uma vodka com limão e gelo.
Acendi um cigarro e baforei, resoluto.
Nisso, cheguei a pensar no fim da disputa,
Pois todo mundo tem amor ao próprio pêlo.

A música recomeçou e, junto, os papos
Animados retomaram conta das mesas.
Tranqüilizei-me e passei a saborear
A vodka, a cerveja, lembrando dos sopapos,
Do esporro e também da troca de gentilezas.
Ri, levantei, olhei em volta e fui mijar.

Coisa boa, ah!, esse é um prazer inenarrável.
No mundo dos homens, mijar é religião.
Nessa hora o bebum não tem Deus, tem um pau,
O altar é o vaso e a reza, um jorrão.
Sacudi com amor para que nenhum pingo
Molhasse minha cueca branca, que estava um brinco.

Saio do reservado gostando mais da vida.
Quando dou de cara com duas caras de poucos
Amigos: o gago e o que me armou pra briga.
Olhamo-nos feio e só. As marcas dos socos
Eram visíveis a olho nu. Saí a salvo
Do banheiro, achando positivo o saldo.

Já estava me imaginando estar com tudo,
Quando entra no bar uma morena daquelas,
Que deixa qualquer homem sem rumo e sem velas,
Acompanhada de uma feinha e um peludo,
Calvo, forte e musculoso como um gorila.
No peito, sobre os pêlos, a corrente brilha.

A morenaça senta, cruza as pernas, vira-se
Pra mim e pergunta: “Tem fogo, bonitão?”
Isso me incendiou o corpo e a alma e, diga-se
A verdade, o ego virou cauda de pavão.
Solícito como um bom garçom, acendi-lhe
A tão famosa cigarrilha Picadilly.

O olhar de agradecimento que ela me deu
Não passou em branco pelo seu acompanhante,
Que sorriu, avisando que aquilo era seu.
Entendi perfeitamente e, dali em diante,
A coisa tomou rumos que nem eu nem Dante
Ousaria imaginar entre o inferno e o céu.





Capítulo 3


O movimento punk nunca há de morrer


“Tudo fudido
Tudo sujo
Essa é uma conversa punk
A gente acredita em si
E nossos pensamentos cheiram mal”

(thadeu e edílson)



chegaram em treze no bar, às duas horas e um minuto,
sei exatamente porque havia acabado de informar para ela
(detalhe: o monstro ao seu lado estava de rolex)
cabelos em pé, coturnos, roupas em farrapos,
circuitos em curto
a noite não seria mais aquela
confiro o jontex
e coço os bagos

os caras chegam e tocam o foda-se
riem alto e pra valer
(detalhe: um deles é quase o dobro da fera que está com a bela)
e é o que me reconhece e torna-se
o amigo da vez

traz o resto da turma até minha mesa
não tenho certeza
e nem sei se nos apresentamos
mas vamos e venhamos
eles gostam de ser chamados de “os piá da véia”
pedem cerveja e vão ficando por aqui
eles, do marcos prado não fazem nem idéia
falo de algumas canções
cantarolo alguns poemas
e do iapoque ao chuí
vou conquistando corações
falando apenas
o essencial

esqueço o resto
pra não partir pro pau
digo que não presto

lembro-me bem, estávamos felizes e bem humorados
e a morena, ah, a morena
meus olhos eram os bíceps mais avantajados do bar
os dela, cada vez mais sorridentes,
os dele, iguaizinhos ao de satanás
mas todos queriam mais

a fúria da nossa mesa parece incomodar os que se retiram
duas mesas fecham a conta
e nenhuma delas me desaponta

(duas câmeras em close :
uma em mim, outra nela
iluminação: tudo muito nítido, até demais
trilha: o movimento punk nunca há de morrer!)

Uma voz profunda lá no fundo mas bem no fundo diz
“o que é que você tanto vê nela?”
E eu, querendo ser feliz,
Argumento sem dar uma piscadela:

mas essa cerveja, mas essa canção, que não acabo,
me pôe comovido como o diabo


3,30 h E TUDO ESTÁ BEM!!

Os caras de grana não dão sinais
E eu com seis garrafas quebradas no bolso
Não posso fazer mais nada. Olhei em torno
E assim como veio o movimento ia...mas

Aproveitando o vácuo
Um velhinho levanta-se
Abre uma pasta
Tira de dentro um palquinho e o põe sobre o balcão
Ajeita a iluminação
As caixinhas de som
Repete 3 vezes “number nine” ao microfone
Confere a afinação do pianinho
Deposita uma partitura sobre o suporte
E retira do bolso
Um ratinho de fraque
E uma borboleta vestindo um longo generosamente decotado
Coloca-o ao piano
E a ela entrega o microfone

Silêncio de acordar cemitérios
A platéia nem respira
O dono do bar sai e volta de óculos
Enquanto isso...
A morena tenta mostrar que tem seios mais atraentes
Eu? Bem ...vocês vão dizer que eu estava bêbado!

Quando os primeiros acordes soaram
Uma sagrada emoção toma o coração de todos
Mas é na primeira frase da melodia
Que a madrugada vira meio-dia

Não é um ser humano cantando,
Não não é, é um anjo
Sua voz seria a da sereia
Se não fosse paixão na veia

O grandalhão, que acompanha a morena,
Deixa cair o cigarro da boca
E tão logo termina o show
Sob aplausos que quase derrubam o bar
Pede pro velhinho pôr preço na dupla
“Ó, pra ser bem sincero co sinhô,
a dupla eu não vendo não
mas se interessar a voismecê
posso passar na gaita a brabuleta”
disse e sorriu sem dentes
“E quanto é só a mariposa?”
“Digamos que o sinhô paga todas pra essa rapaziada”
“Faço melhor, aqui estão dois mil reais
o senhor mesmo paga”
Arranca a borboleta de suas mãos e sai voando
A feinha faz bonito e vai junto

Ninguém se conforma

Alguém diz – mas o senhor é muito trouxa
“sô não”
Outro – ela vale milhões
“vale não”
E mais um: o cara trapaceou
“trapiciou não”
E um último: esse véio tá necrosado
( acho que ele quis dizer esclerosado)
“tô não, a brabuleta não vale nada”

voltaram os trovões gritadores
- tem que internar um filho da puta desses
“o sinhô pode servir tudo do bão que eles quisé
eu quero vorta pra casa sem um tostão”
senta na nossa mesa
“ué mas cadê a festa?”
eu ainda arrisquei – o senhor vendeu bem baratinho!!
“vendi não”
14 vozes fizeram a mesma pergunta: “como não?”
e ele:
“o ratinho é que é um tremendo de um ventríliqui”

A gargalhada que se segue
Bom... isso é com vocês


Só sei que unidos sob a tutela do bom velhinho

Tocamos juntos o foda-se
E nós, eu já me achava um da turma “os piá da véia”:

“Viva o véio! VIVA!!”
E pro véio nada, TUDO!!!
Então como é que é?!!

Acepipes e guloseimas parecem cair do céu
E, quando vejo aquele anjo só,
Fulmino: você vem sempre aqui?




Marcos Prado, poeta curitibano, um dos criadores do movimento punk em Curitiba.
Morreu em 1996, aos 35 anos de idade.






Capítulo 4

O problema, sua mulher e seus probleminhas



O sábado amanheceu todo endomingado
E vestido pra festa. Um sol de rachar
E com mania de quinta grandeza, esquentado,
Deu ao bar um colorido novo, sem par.
Dos sessenta e poucos pés-de-cana, da noite
Anterior, nenhum arredou a bunda e foi-se.

Cerveja da boa, maconha da melhor, kibe,
Coxinha e pastel à vontade, quase tive
Uma congestão por ingestão excessiva
De sólidos, líquidos e gasosos, mas,
Beatriz garantiu-me a compostura capaz
De manter bom humor e alegria expressiva.

Pra quem não sabe, Beatriz é a morena ao lado,
Que, por unanimidade, foi eleita rainha
Do meu coração, deusa da minh’alma, rima,
verso e estrela do palco do meu quarto.
O namoro vai bem, apenas duas intrigas,
Três tapas e uns palavrões é o saldo das brigas.

Mas nada que interfira em nossos sentimentos,
Puros e ternos que, na suscessividade
Dos minutos, vão se transformando em momentos
De profunda entrega e frisson sexual. Verdade
Que, ali no bar, o ato não pode ir até o fim,
Mas o de bêbada não tem dono e assim...

O Jair, proprietário do estabelecimento,
Até ofereceu o quartinho lá do fundo,
Mas meu desejo, esse meu estremecimento,
A sensação de que este é o amor maior do mundo,
Levou-me àquele mesmo arrebatamento
Juvenil, inocente, idiota e profundo.

Eis as razões pelas quais não pulei em cima
E não troquei o óleo na sua bela oficina.
Mas é bom o toque de sua pele, seu beijo,
As palavras sussurradas em meus ouvidos,
Seu cheiro de mel, seus dentes e seus sorrisos,
De repente, são tudo que quero e almejo.

Em nossa mesa, o bom velhinho dorme bem.
Sob ela, um dos punks, o tal de Cobaia,
Desmaiado, dorme melhor do que ninguém.
São dez horas e, antes que meu rabo-de-saia
O acorde com a discussão que começou,
Levo-a ao jardim sob um pessegueiro em flor.

Há uma mesa pequena e nos instalamos.
O tom baixa e a fala ganha um amoroso
Contorno. Logo logo estamos que estamos.
É um tal de pega e aperta mas tão gostoso,
Tão gostoso que ali mesmo ela vai pro pau,
Vítima do meu enorme instinto animal!

Saciado, fecho o zíper e ouço a sentença:
-Só sei que você acabou de me engravidar!
-Como? Mas nós mal nos conhecemos, Beatriz!”
- Sim eu sei, mas a ter filho estou propensa,
Neste período fértil não podia lhe dar.
- Pelo amor dos meus filhinhos! O que é que eu fiz?

- Toda mulher sabe quando ela engravida.
É uma intuição, um poder divino da vida.
- Pai!, vou ser pai! Saio gritando como um louco,
Acordando, derrubando, abraçando a todos.
Recomeçamos a brindar e não foi pouco:
Brindo até com quem tinha me dado uns socos.

Bebemos tanto que alguns, não demora muito,
Começam a vazar. E o vômito em conjunto
Daquela gente veio sobre nós em jorro.
Nem penso: enfio a mão no primeiro cagão,
Que rola sobre a gosma com o bofetão
E transforma o noivado num tremendo esporro.

O nojo acabou com a briga dessa vez.
Fedíamos e o quanto fedíamos não perguntem.
Sei que um não querer encostar no outro fez
Uma pausa e nessa pausa só ouvi: “Ajuntem!
Limpem tudo, seus porcos filhos de uma puta!”
Num minuto ninguém nem pensa mais em luta.

Um pedaço de mangueira vira chuveiro
E eu depois do banho já me sinto inteiro.
O seo Nestor, este espetacular velhinho,
Saíra e voltara com carnes e lingüiças,
Pães, tomates e cebolas, além de vinho,
Cachaça, carvão e muitas outras delícias.

O Jair parte para a ação instantaneamente.
Distribui tarefas específicas, dá
Ordens coletivas e, num piscar de cílios,
O braseiro solta faíscas no olho da gente
E o cheiro da lingüiça na brasa é o que há,
Pra atrair mulheres, sogras e muitos filhos.

Uma caipira num balde de cinco litros
Rolava de mão em mão quando eles chegaram.
Se é verdade que a bebida atrai maus espíritos
Então o inferno entrou por onde eles entraram.
Mais de um casal começa a discutir, brigar,
E a bater nas crianças que passam a gritar.





Capítulo 5

O inferno é mais em cima.


A loira oxigenada, batom roxo, saia
Justa e curta, bate com a bolsa num piá.
No ato, saltam seios do tomara-que-caia,
Não são bonitos, mas ninguém deixa de olhar.

Um sujeito, pintor, pelas manchas de tinta
Nas roupas, mete o pé na bunda da distinta,
Que rola e grita histericamente na grama.
Beatriz intervém, rapidamente e reclama.

O guri, alvo da bolsada, se aproveita,
Ergue a saia da falsa loira e deixa a bunda
Enorme aos olhares da malária inteira.
O pintor, que de tão puto, já está corcunda,

Se agacha mais ainda, agarra o menino
Pelos cangotes e, então, bem devagarzinho,
Começa a apertar c’os dedos seu gorgomilo,
Beatriz fecha os olhos pra não ver aquilo.

O garoto, azulado, esperneia mais
Que aposentado quando recebe o extrato
Do benefício. Súbito, um outro malaco
Resolve dar as tintas ao pintor. Jamais

Presenciei tamanha porrada e tão bem dada.
O pintor, primeiro, fica azul; depois, preto;
Em seguida, cai roxo junto à arreganhada,
Que ainda exibe o pentelhame escuro e crespo.

A mãe da loira, sogra do pintor, intrusa
Da festa, sob um ataque de nervos, desmaia
E tem convulsões. O piá vendo a avó confusa,
Chora, abraça a velha e fica de atalaia.

A cena que se segue serviria de exemplo
Para qualquer palestra à cerca do non sense.
O dono aproveita a deixa e não perde tempo,
Passa a mão numa ripa e, insensivelmente,

Começa a cacetear parelho todo mundo.
O corre-corre abre uma clareira imensa,
Os beberrões fazem, aos berros, um rotundo
Protesto. O Jair se acalma e tudo, lenta

E silenciosamente, retorna ao normal.
Acodem o pintor, a loira, o piá e a velha,
Porém um sério deslize, quase fatal,
Põe a mulherada toda em pé-de-guerra.

É que na hora de acudir a velha epilética,
O bebum, que a carrega no colo, tropeça,
Cai e os dois se estatelam, de forma patética,
No chão. A velha rola e bate com a testa

Num toco, que lhe abre uma larga avenida,
Dividindo os dois lados do rosto enrugado.
A mulherada reunida, puta da vida,
Avança contra o borracho que, aterrorizado,

Recua e cai sobre a churrasqueira improvisada.
A cena se inverte e elas engatam a ré
Ao tomar consciência da tremenda cagada.
Queimado, enlingüiçado, da cabeça ao pé,

E ainda de fogo, sobre a brasa o bebum, em chama,
Levanta e, parecendo um monstro de ficção
Científica, dá dois passos em direção
À sua família que grita, chora e reclama,

E cai como um corpo morto cai, desmaiando.
Tenho a impressão de estar dentro de um pesadelo,
Onde todos os movimentos vão passando
Em câmera lenta, como se o meu apelo

Não conseguisse sair da garganta e ser
Ouvido pelas pessoas que me rodeavam.
Ilusão minha. Dois grupos se formaram
Rapidamente como pude perceber.

E dois carros partiram para hospitais
Diferentes. Só então eu disse pra Beatriz,
Que me dizia “vamos embora”: - me diz
Uma coisa, nas circunstâncias atuais,

Não é melhor ficarmos e esperar notícias?
Ela reluta um pouco, mas sorri e diz sim.
Suas mãos tocam as minhas cheias de carícias
E eu só desejei viver para sempre assim!





Capítulo 6


O povão, no fundo, bem lá no fundo, é bão.


Beatriz diz que já volta, vai tomar um banho,
Trocar de roupa e dar um oi para a família.
Quer que eu faça o mesmo, se não apanho.
Digo que vou e não vou. "Cerveja! Maravilha!"

Quando boto o olho em volta, as coisas vão bem.
Carne no fogo, cerveja, vinho, é servida
Uma lingüicinha com pãozinho também.
Diga leitor (a), quem vai querer outra vida?

Os ânimos estão serenados, me sinto
Tranqüilo, em paz. O que que eu quero mais, Meu Deus!?
O que que eu quero? Uma talagada desse absinto,
Claro, é isso! Primeiro os meus, São Mateus!

Putz, um arrepio levanta todos meus pêlos,
Parece que adivinho, o que vai acontecer.
O seo Nestor, apesar de todos os apelos,
Fez mais um balde de caipira. “Beber!

Vamos beber!” Um pé inchado, de narigão
Avermelhado, berrava e ria, como um louco.
O balde rapidamente ia de mão em mão
E, quando chegou até mim, restava pouco.

O vozerio ultrapassou os decibéis
Permitidos por lei. As fêmeas riam e se abriam
Pra meio mundo. Tive que contar até dez,
Pra não meter a mão onde elas queriam.

- Hein, seo Nestor, quem viu esse pessoal e vê
Agora, não diz que são os mesmos, não é?
- O povão, no fundo, é bão, basta se querê
Bem o próchimo e olhá de longe sua muié.

- Se as pessoas seguissem a sua filosofia,
O mundo não andava com um pé atrás.
Não sei o que ouviu de tão engraçado, ria
Alto e desbragadamente, como quem faz

O que mais gosta. “Voismecê é uma bola.”
Me disse e caiu de novo na gargalhada.
O mulherio veio e o agarrou pela gola,
Pondo fim à nossa agradável palhaçada.

Os punks comem tudo que vem pela frente
E tomam aos litros porretes colossais.
É tão bom ser completamente diferente,
Eu penso, refletindo sobre os animais.

Já bebi mais do que cabe em mim quatro vezes,
A tarde cai e o sol está pegando fogo.
A primavera inteira só dura três meses,
Mas flores nascem durante o ano todo.

Estou pra lá de comovido, essa bebida,
Esse entardecer, essa gente, esse amor,
Que entrou em mim quando eu estava de saída,
Essa vontade de ser seja lá o que for.



Capítulo 7

Do inferno ao céu



Gargalhadas retumbantes por toda parte,
Comida em abundância e bebida da boa,
Viver bem é verdadeiramente uma arte,
Digo pra mim, sem perceber que o tempo voa.

No céu, as primeiras estrelas tremelicam,
Pipocam aqui e ali inventando ritmos,
Para delírio dos meus olhos que nem piscam.
É tão grande o universo e tão frágeis os signos,

Diante do mistério da vida, que percebo
Emocionado minha infinita miséria.
A verdade, alma gêmea do belo, é enlevo,
Que se perde na treda ilusão da matéria.

Ah! Os espíritos elevados, os santos,
Os poetas, os amantes do saber, artistas,
Estão aí espalhados pelos quatro cantos,
Se equilibrando, como os malabaristas

Se equilibram, no fino fio da esperança
De que tudo um belo dia será bem melhor.
Uma estrela cadente, riscando, avança
E faz eu lembrar de uma canção do Belchior.

Ninguém na Terra está tão só como eu agora.
A abóboda celeste, de um azul profundo,
Já acendeu todas as suas luzes lá de fora
E eu vejo então toda a beleza desse mundo.

Meu olhar vai de constelação a constelação
E de constelação em constelação vou,
Como vai a emoção, de coração a coração,
Perguntando de onde vim, onde estou, quem sou.

Uma lágrima cai do meu rosto e orvalha
Uma pequena folha que, distraidamente.
Quase esmago. Mas meu peito todo se cala
Diante do milagre que está à minha frente.

Pra que saber? Por quê? Os séculos futuros
Terão o mesmo véu de mistério, o mesmo
Enigma devorando o indecifrável medo
Do homem, que, por pura ambição, vive em apuros.

A hipótese bestial do apocalipse é triste,
Transforma nosso destino e nos acomoda,
Não nos dando a opção de agir sobre o que existe
E o meu vizinho fosse só alguém que incomoda.

É o mundo dos solitários, dos lunáticos;
Estes vivem à parte, aqueles, a chorar
Por si mesmos. E eu vejo a dor desses fanáticos,
Como um aviso aos navegantes de outro mar,

Outra vida, onde o amor e a compaixão andam
De mãos dadas, como eu e Beatriz, há pouco
Andávamos. Sei bem que as emoções é que mandam
No coração, foi o que aconteceu conosco.

Bah! Estou podre de bêbado, muito mais
Do que eu estava quando cheguei aqui ontem.
Mas minha embriaguez é lúcida demais
E a história escrevo, não espero que me contem.

“Vai um leitãzinho à pururuca, polaco?”
O Jair chega com um pedaço abençoado,
Que aceito com um sorriso de lado a lado
E devoro à tripa forra o enorme naco.

Vou até o Nestor e descolo uma cerveja,
Os punks mais berram do que cantam, mas todos
Repetem o refrão simples: “Tudo besteira,
Vamos morrer de qualquer maneira!” São tolos

E pueris os versos seguintes, mas povão
É povão e a turba feliz da vida canta.
Até eu entro na dança e arrisco uma canção.
Bem que dizem, quem canta seus males espanta.

Tive que tocar mais do que queria, pois bis
É compromisso sagrado para o artista.
Nos divertimos a valer, fiquei feliz,
O talento da moçada saltou à vista.

Entrego o violão pra punkarada e me mando,
Levo o copo e o vinho, presente do Jair
E sento novamente no mesmo lugar, quando,
Como um anjo vindo do céu, chega Beatriz!

O vestido branco que veste, simplesmente
É deslumbrante, dele saltam os quadris
Mais generosos que eu já vi. O tecido rente
Ao corpo realça os seios e eu amo Beatriz

Pela segunda vez no mesmo dia. Os punks
Ficaram de cabelo em pé para saudá-la.
Os demais fazem as poses mais elegantes
E sorriem como se não quisessem nada,

Além de servi-la, como o mais servil escravo.
Me sinto assim por um momento, mas, ágil,
Ajeito a cadeira pra que ela fique ao meu lado
E chego à conclusão de que tudo é mais fácil,

Quando a gente está com a melhor companhia.
Bebemos o vinho no mesmo copo. Beijo
Por tabela, ela diz e eu, cheio de alegria
E amor pra dar, vender, emprestar, só desejo

Que este momento lindo não acabe nunca.
A cada toque seu, meu corpo todo pensa
E ela percebendo meu prazer mais se junta.
O seu gesto é minha mais doce recompensa.

O violão, acompanhado de mesas, litros,
Cadeiras e copos, chegou até nós dois.
Fomos cercados pela multidão de espíritos,
A cantoria ninguém deixou pra depois.

E novas canções alegremente felizes
Uniram céu e terra, os homens e as mulheres.
Não demorou para nos servirem perdizes
Ao vinho, nos melhores pratos e talheres.

Beatriz se sentiu rainha com tantos cuidados
E eu, claro, seu rei, lhe ordenei então: “Pois não?!"
Rimos pra valer e fomos tão bem tratados,
Que cheguei a pensar em reencarnação!




Capítulo 8

Criança, louco ou borracho
Quando cai
Deus põe a mão embaixo.


Perco para o Rubão, dos piá da véia, o título
De campeão de queda-de-braço, depois
De vencer oito oponentes. Mas, o capítulo,
À parte, não foi a final entre nós dois,

E, sim, a das mulheres. Ana, namorada
Do Sérgio, também um piá da veia, na final
Feminina, num arranque fenomenal
Quebra o braço da infeliz rival derrotada.

A fratura, exposta aos nossos olhares
Incrédulos, nos parecia inverossímel,
Uma coisa do outro mundo, algo impossível,
Mas, na real, só cuidados hospitalares,

Sérios e competentes, poderiam resolver.
Uma caminhonete sai, queimando os pneus,
Levando-a ao médico e aos cuidados seus.
E nós, como não poderia deixar de ser,

Agora, vamos criando versões do fato,
Algumas com fortes traços de fantasia.
Durante uma boa parte da noite o braço
Quebrado vira piada nova, chisteria

De todo tipo. A Ana cansou de ouvir
Brincadeiras como “quebra uma pra mim?”
Ou “é queda e não, quebra-de-braço”. Pra rir
Ninguém pede licença e assim o que era ruim

Trouxe alegria e felicidade. Maior
Ainda quando o assunto é Nicolau, o polaco,
Que quase foi assado vivo. O melhor
Foi vê-lo chegar rindo com esparadrapo

E gaze espalhados por toda cara. Nem
Bem sentou-se e alguém bateu de bate-pronto:
“Deixa eu conferir se você já está no ponto!”
E um outro: “Seu rosto assim fica muito bem!”

E: “Não te falei que você era um mascarado!?”
Foi uma gargalhada atrás da outra, horas a fio.
Nem a pobre velha escapou deste sopapo:
“Fazer tatuagem nessa idade é um desafio!”

Ou: “Para mim, ela sempre teve duas caras!”
Pensei que fôssemos morrer de tanto rir,
As piadas se sucediam e não foram raras
As vezes que rimos, de chegar a cair

E rolar no chão. Brindes e mais brindes eram
Oferecidos aos protagonistas. Gritos,
Saudações e aplausos entremeiam e levam
A novas gargalhadas e a novos agitos.

Beatriz tem uma risada clara e audível,
A léguas de distância, e isso contagia
Ainda mais o ambiente dessa noite incrível,
Cheia de graça, congraçamento e alegria.

Nicolau teve muita sorte apesar
De tudo. As queimaduras eram bem pequenas
E os curativos, pra proteger o lugar,
Pois a cura levaria alguns dias apenas.

O seo Nestor vem até a nossa mesa e diz
Que o Jair prepara um belo caldo de mocotó.
A notícia anima ainda mais Beatriz,
Que me dá muitos beijos em um beijo só.

O balde que vai de mão em mão pelo bar
É um coquetel de ervas e vodka, receita
que a mãe Joana aprendeu, lá em Madagascar,
Durante os rituais de uma estranha seita.

Não sei o que continha. O efeito, que era bom,
Ficou muito melhor depois do mocotó.
Mas quando vi um gafanhoto, de mosquetão
E farda, dando uma de Barishinikov,

Debaixo do meu nariz, percebi que o troço
Já é demais. Charutos são distribuídos
E, ao som ritual dos atabaques, o negócio
Fede ainda mais. Um coro de gemidos,

Dos homens, faz base para as melodias,
Cantada por algumas mulheres, enquanto
As outras dançam fazendo alegorias,
Estranhas e sensuais. Seu Nestor, o pai-de-santo,

E Mãe Joana, ocupam o centro da roda
E vão baixando cavalos na macacada.
Eu, aos poucos, vou entendendo, mas é foda!
Olho para Beatriz e ela, transfigurada,

Levanta Pomba Gira e começa a dançar,
Fazendo circunvoluções sobre si mesma.
A minha estupefação, dá pra calcular,
É tanta, que me pego babando na mesa.

Mas quando vi o Nestor e Mãe Joana vindo
Na minha direção, eu compreendi tudo.
E quando compreendi já era tarde, indo
Até o meio da roda, rezo, mas não me iludo!





Capítulo 9

Entre o Céu e a Terra



Algo aconteceu comigo, tenho certeza,
Por duas janelas abertas, eu enxergava
Meu corpo fumando, bebendo e sobre a mesa,
Velas, pratos, santos, flores. Onde eu estava?

Por que não ouvia absolutamente nada?
Morri, só pode ser isso. Bati co’as dez.
Fui assassinado, virei alma penada
E agora estou vagando entre os infiéis!

Claro, é isso! O que estou vendo é meu espírito,
Eu estou preso em algum lugar entre o Céu
E a Terra. E, por alguma graça de Cristo,
As janelas unem a sala a Beleléu.

Ou então agora como câmera reencarnei.
Mas que raios de câmera é esta com duas lentes?
Um binóculo!? É mesmo!! Será? Ou serei.
Uma energia que se move entre duas correntes,

Anjos versus demônios? Eu mesmo sou Deus,
É isso! Claro, sempre me achei especial,
Diferente, um cara bom, justo com os meus
Amigos, inteligente, diria genial,

Mas descubro agora que sou um Deus modesto.
Sim, tudo no momento faz sentido. Tudo!
Bom, nem tudo, para ser um Deus bem honesto,
Há detalhes que ainda me deixam confuso.

E, que eu saiba, Deus não tem dúvida nenhuma.
Sim, mas faz cinco minutos que eu me toquei
Da minha divindade, porra! Nem eu, uma
Entidade única, à perfeição cheguei.

Será bem possível que eu um dia chegue lá,
Afinal, sou o que há de melhor nesse mundo,
Que tirei da manga em homenagem a Alá,
Ou seja, a mim mesmo e ao que existo junto.

Opa! Já começo a pensar como um Deus pensa.
O diabo é que, quando era gente, às vezes,
Eu tinha esses rompantes de vaidade imensa
E me fechava, dias, semanas, meses.

Eu ficava curtindo meu ego e me
Pegava para cristo e sofria mais que Cruz
E Sousa, quando Gavita* enlouquece e se
Vê envolta por uma névoa espessa e sem luz.

Assim eu vivia ou pelo menos achava
Que vivia, mas, olhando para trás agora,
Confesso minha nulidade e minha rasa
Compreensão. Essa fé cega e surda, que adora

Simplesmente por adorar, não tenho mais.
Analisando bem, eu sou um deus de bosta.
Faço tanta cagada, que até satanás
Acha que eu estou do jeito que o diabo gosta.

Bem...ele que se foda! Filho de uma puta,
Eu vou transformar a sua vida num inferno!
Canhoto do caralho, sob minha batuta,
Não há nada além de sofrimento eterno

Guardado pra você e sua trupe morfética.
Quem dá as cartas aqui sou eu e mais ninguém.
Vocês rezam por minha bíblia, corja maléfica!
Pra cima de mim não! Nem venham que não têm!

Comigo é assim. Abro os olhos e onde estou?
No bar, é lógico. E todo mundo me olhando.
“Que porre, hein?!” Reconheço a voz do seo Nestor.
E sinto aos poucos minha consciência voltando.


* Gavita, esposa do grande poeta simbolista Cruz e Sousa.




Capítulo 10

O fim é só o começo.




Naquela madrugada tomamos o estoque
Do Jair e saímos ainda pra comprar
As saideiras no posto do Bacacheri.
Quatorze caixas de cerveja kaiser bock,
Foi tudo que nós conseguimos encontrar,
Após bater no poste e quase demolir
O carro na parede de uma casa imprudente,
Que apareceu do nada bem na nossa frente.

Tentamos convencer o proprietário idiota
De sua culpa, mas como estava irredutível,
Deixamos para lá e o irresponsável volta,
Um trintoitão na mão e disparando um míssel
Para cada um de nós. O que acerta o meu carro
É de raspão. Ô, cara ruim de boléia e mira!
Paramos mais adiante, pra conferir o estrago,
Mas como está muito escuro a gente se atira.

Somos recepcionados como heróis de guerra,
O Jair improvisa medalhas, com tampas,
E, em discurso vibrante, lança sobre a terra
Palavras que iluminam bem mais do que lâmpadas.
Nestor e Beatriz fazem de modo tão nobre
A entrega da honraria, que aquele povo pobre
E humilde, freguesão do Jair, de emoção
Chora e nos aplaude com todo coração!

Eu mesmo me emociono pra valer e choro,
E rio, e abraço aquela gente com amor,
E olho para Beatriz e nela eu me demoro,
Até que também me olhe e não tenha nem por
Onde escapar do meu desajeitado abraço.
Seu sorriso me atinge como um tiro atinge,
Se tem a mira exata, é certo que passo
Dessa pra melhor. Morto de amor lhe ergo um brinde!

Quando ouvi, gritei “é tiro!”, o mais alto que pude
E procurei Beatriz, em meio à confusão.
Não sei mais quantos tiros ouvi amiúde,
Mas percebo alguns corpos caídos no chão.
Ouve-se: “É um assalto!” e homens nos cercam
Armados até os dentes. Conto quantos são.
E planejo algo enquanto as mulheres rezam
E têm seus faniquitos, com toda razão.

Não posso fazer nada, absolutamente nada.
Enquanto eles recolhem grana, celulares,
Relógios, jóias, tenho a impressão de ouvir
Alguém gemer. A voz é quase sussurrada,
Como se estivesse em todos os lugares
Ao mesmo tempo. Tento, em vão, descobrir,
Mas, só por levantar a cabeça, um bandido
Me dá uma paulada, que me deixa estendido.

Finjo que desmaio. Levo mais uma no lombo,
Mas agüento bem, sem a mínima reação.
De repente, sem mais nem menos, o som do
Terror. Tiros, rajadas saem da escuridão
E ouço um grito forte “Polícia, ninguém
Se mexa!”, seguido de um intenso clarão.
A rápida resposta é fuzilaria sem
Precedentes, nem o primeiro mundo tem.

Ninguém sabe quem é quem, chora mais quem pode
Menos. E o que se segue, só agora consigo
Relatar. Vinte e um mortos e treze feridos,
Na contagem final. Uma manchete explode,
No dia seguinte em letras garrafais. Reflito
E não acho sentido pra estar entre os vivos.
Uma alucinação coletiva? Beatriz vive?
Onde fui, onde vou, nem Deus sabe onde estive.

Atravessei o inferno, purgatório, céu,
E não a encontrei. Durante a travessia,
Matei anjos, demônios. Me desfiz do véu
Do pecado e da inutilidade vazia
Do lavar as mãos. Fiz o que tinha a fazer
E, se hoje não consigo mais nem me manter
Em pé, é porque sei que, sem Beatriz ao lado,
Tanto faz estar vivo ou ser mortificado.

Pra matar só preciso de um motivo e tenho
Muitos no coração. A poesia é meu farol
E na luz, que me guia, não há perdão nem medo.
Mesmo quando ando só na madrugada, o sol
Da vingança arde solícito aos apelos
Daquela que fazia levantar os meus pêlos,
Com um simples olhar. Ah, minha Beatriz, Beatriz
De um dia, Beatriz de sempre, não sei ser feliz.

Caminho dentro de uma noite escura e fria,
Procurando os culpados, formas de puni-los
E antegozando o grande prazer que teria:
Vê-los sofrer até a morte com os castigos,
Implorando piedade, pedindo clemência
E eu, verdugo maldito, com toda paciência,
Lentamente arrancando, naco a naco, a carne
Sobre seus esqueletos. Nunca será tarde!

Nunca, meu anjo! Cinco já prestaram contas,
outros correm, fogem, como o diabo da cruz,
Da minha ira santa. São baratas tontas
Que esmagarei, Beatriz, no altar sagrado, à luz
Do nosso amor. Caminho e no caminho sinto
A morte caminhando ao meu lado direito.
No esquerdo, tua presença, que sempre pressinto,
Ao lado do meu coração, dentro do peito!

Nestor, Jair, Mãe Joana, Rubão, Nicolau,
Devem estar aí, com você, no lugar
Que Deus reserva aos justos, livres desse mal-
Estar, que é a vida. Só me resta odiar,
Para poder viver e continuar a amá-la.
Na lembrança, os mortos empilhados na sala
Do necrotério, clamam aos céus: Justiça!
Então vou à luta enquanto Deus se espreguiça.

Esta noite está clara, como um ovo, a rua
Se estende sobre si mesma e vai pra onde vou.
Tenho um encontro e é comigo. Nem a lua,
Testemunha ocular, saberá o que se passou.
Entro no carro, acendo os faróis e acelero.
Os pneus gritam nervosos e vou de zero
A cem em dez segundos. Na delegacia,
Reunidos, todos os autores da chacina.

De um lado das grades, os quatro fugitivos;
Do outro, agentes e delegados. Discutem,
Apontam os culpados e alegam motivos,
Provavelmente. Penso e nem mesmo uma nuvem
Embaça os pensamentos. Tudo está bem claro.
Sem dúvida nenhuma, paro o carro no alto
Da ladeira. Lá embaixo, meu único alvo,
Um prédio antigo que fecha a rua desse bairro.

O volante travado, mira certa, solto
O freio e mais de mil quilos de dinamite
Partem com meu argumento final. Eu volto
Os olhos para o céu e, embora não acredite,
Vejo Beatriz em meio a fogos de artifício.
Ela sorri pra mim, enquanto o edifício
Se espalha reduzido a pó e silêncio.
“Todos mortos. Nenhum sobrevivente”. Penso

E digo pra mim mesmo: “Acabou. Acabou!”
Um peso imenso sai dos meus ombros e leve,
Bem leve, sou levado aonde começou
O interminável sonho que, agora, não serve
De consolo ou de estímulo pra continuar
A viver sem Beatriz. Uma placa de alugar
Está afixada à porta. Entro no jardim
E sob o pessegueiro em flor vou até o fim.

Antonio Thadeu Wojciechowski



quarta-feira, abril 08, 2009

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Cotas de Dano

Sei que não sou flor que se cheire, há muito tempo.
Minhas capitanias não são hereditárias
E nem é meu o sonho céu das araucárias.
O desejo passou, caiu no esquecimento.

Ficou o gosto amargo, o desapontamento.
De nada adianta buscar a causa, são várias.
Mas não vou te escrever notas catilinárias
ou o inventário do mútuo padecimento.

Deixo pra lá minha crueldade mental.
De que me valeria agora ter razão?
Meu amor é grande demais pro meu tamanho.

Pode ir, vou ficando por aqui! Que tal?
A vida continua e chego à conclusão:
Hoje que me conheço bem me sinto estranho!

Antonio Thadeu Wojciechowski

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sexta-feira, abril 03, 2009

Thadeu, Solda e Dante, discípulos fervorosos do Saboro Nossuco, festejando o aniversário do Dalton trevisan no bar Ao Distinto Cavalheiro.


Eu havia postado que ficaria dez dias, pelo menos, sem postar nada. Mas hoje não pude evitar. O Saboro Nossuco tem uma personalidade muito mais forte do que a minha.
Até semana que vem.

Polaco da Barrerinha


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Saboro Nossuco, muita vez, caminha de madrugada pelas cercanias de seu modesto templo na Barreirinha. Único bairro que, segundo ele, não tem população bairrista em Curitiba. “Os polacos da Barreirinha são uma espécie de rara extirpe.” Diz e toda vez que diz isso, ri. Ri como se risse de si mesmo.
Mas, voltando ao assunto, dias desses, foi durante a lua cheia, encontrei-o pensativo, de dedo em riste, apontando para a Lua.
- Boa noite, Mestre!
- Muito boa.
- Lua maravilhosa, hein!?
- Eu estava fazendo cócegas nela.
- ...?
- Mas parece que ela não sente.
Disse isso e com o dedo começou a lhe fazer cócegas novamente. Para mim, aquela cena era algo totalmente incompreensível. Mas não perdi o prumo:
- Alguma vez, ela já sentiu cócegas, Mestre?
- Como posso saber? Eu tenho muitas outras coisas pra fazer!
Levantou-se, me contou 4 histórias e, lépido, desapareceu entre as sombras.


1.

Mestre To Fui era de uma bondade inenarrável e fez milagres em suas andanças pelo mundo. Muito se dizia dele, a ponto de já não se saber o que era verdade e o que não. Kwa Kin, discípulo de Mestre Bo, curioso como todo jovem inteligente, dedicou-se a compilar todas as histórias que se contavam.
- Mestre Bo, ele foi verdadeiramente um santo.
- Parece que sim.
- O senhor o conheceu pessoalmente?
- Parece que sim.
- Como assim, parece?
- É que, quando ouço falar dele, me escapa a pessoa que conheci.
- Entendi, exageram muito. É isso que o senhor está dizendo?
- Parece que sim.
- Mas eu conversei com várias pessoas que estiveram com Mestre To Fui e todas falaram a mesma coisa. Isso já não prova a autenticidade de seus feitos?
- Parece que sim.
- Eu me dou por satisfeito, não tenho mais dúvida nenhuma.
- Parece que não.

Saboro Nossuco


2.

- O que diferencia a vida da morte, Mestre?
- A impossibilidade de ambas coexistirem.
- Mas isso não as diferencia, pelo contrário, torna-as exatamente iguais.
- Aí está a diferença!
- Mas como isso seria possível? Não há lógica no que dizes, Mestre!
- Eu já te dou uma lógica, bem no meio da testa.
Quando percebe que o mestre cuspiu e pegou um pedaço de pau, Wo Po, achando que ia ser descascado, sai em desabalada carreira. Na fuga, encontrou Mestre Tai Ko, que o estaqueou:
- Foges da vida ou da morte?
- De Mestre Wu.
- Então estás morto.

Saboro Nossuco

3.

- Mestre, como é estar com uma mulher?
- É como estar com um pé no céu.
- Entendo. O senhor teve filhos?
- Talvez.
- Mas não cabe ao pai criá-los e educá-los?
- É possível.
- Então o senhor não cumpriu com os seus deveres.
- É bem capaz.
- Perdoa-me, Mestre, mas acho que sua integridade espiritual está comprometida.
- Provavelmente.
- E isso não o diminui diante dos outros mestres?
- O que ouviste dizer?
- Que és inabalável como uma rocha, que os pássaros silenciam para ouvi-lo falar, que tens um coração do tamanho do mundo.
- Que te parece?
- Que nada do que eu disse faz sentido.
- Então vai estudar, meu filho!

Saboro Nossuco


4.

- Mestre, descabelei o palhaço!
- Boa!
- Mas me sinto envergonhado.
- Então vai cagar no mato.
- Sério, Mestre. Me deu uma certa frustração.
- Só porque passaste a mão na cara, não quer dizer que sejas um anormal.
- Mas por que me senti tão mal?
- Remorso. Provavelmente és tão ruim de cama que não satisfizeste tua parceira.

Saboro Nossuco





quarta-feira, abril 01, 2009


Até dia 10 de abril.


Enquanto eu me ausento por 10 dias para terminar um trabalho, divirtam-se com essa belíssima tradução que o Ivan Justen fez da Sílvia. Reflitam sobre o ato de guardar uma mágoa e, por último, riam com essas pérolas da sabedoria popular

Para chorrir.


1- O amor é como capim: você planta e ele cresce. Aí vem uma vaca e acaba com tudo.

2- Estamos vivendo uma época em que o Fim do Mundo não é nada perto do Fim do Mês.

3- Filho é igual a peido: você só agüenta o seu... e olha lá.

4- 90% do meu dinheiro eu gasto com bebida. Os outros 10% são do garçom

5- Galileu, quando afirmou que o mundo girava só confirmou o que nós, amantes do aperitivo, já sabíamos.

6- Marido é como menstruação: quando chega, incomoda; quando atrasa, preocupa.

7- Se o horário oficial é o de Brasília, por que a gente tem que trabalhar na segunda e na sexta?

8- Roubar idéias de uma pessoa é plágio. Roubar de várias é monografia.

9- Não te cases por dinheiro, podes conseguir um empréstimo bem mais barato.

10- Não há melhor momento do que hoje para deixar para amanhã o que você não vai fazer nunca.

11- Sabe o que o argentino tem mais que o brasileiro? Tem mais é que se fuder.

12- A verdadeira bravura está em chegar em casa bêbado, de madrugada, todo cheio de batom, ser recebido pela mulher com uma vassoura na mão e ainda ter peito pra perguntar: vai varrer ou vai voar?

13- Casamento é igual piscina gelada, depois que o primeiro tonto entra, fica falando para os outros: - Pula que a água tá boa.

14- Um cigarro encurta a vida em 2 minutos. Uma garrafa de álcool encurta a vida em 4 minutos. Um dia de trabalho encurta a vida em 8 horas. Vou parar de trabalhar.

15- Se você é capaz de sorrir quando tudo deu errado, é porque já descobriu em quem pôr a culpa.

16- Velho é aquele que quando jovem costumava ter quatro membros flexíveis e um duro. Agora tem quatro duros e um flexível.

17- O homem é o único animal que consegue estabelecer uma relação amigável com as vítimas que ele pretende comer.




cartoon para uma mágoa

uma mágoa que se guarda
é como vestir uma farda
de um exército vencido
além de ser caso perdido
não há gritos de batalha
mas dor a torto e a direito
a fazer alarde e ruído:

cupins na trágica mortalha
e uma lágrima pendurada
na túnica que cobre o peito
como tua única medalha



thadeu w
.


Poema a um aniversário

1. Quem


O mês de floração acabou. O fruto está guardado,
Comido ou pútrido. Sou inteira uma garganta.
Outubro é o mês de armazenagem.

O galpão é bolorento feito estômago de múmia:
Ferramentas velhas, manivelas e ganchos enferrujados.
Estou em casa aqui entre as cabeças mortas.

Deixe eu me sentar num vaso de flores,
As aranhas não vão perceber.
Meu coração é um gerânio interrompido.

Se apenas o vento largasse meus pulmões em paz.
Recruta fuça as pétalas. Elas desabrocham de ponta-cabeça.
Elas chocalham como arbustos de hortênsias.

Cabeças farelentas me consolam,
Pregadas nas vigas ontem:
Internas que não hibernam.

Repolhos: roxos carunchosos, esmerilhados,
Um adubo de orelhas híbridas, peles puídas de traça,
Mas os corações verdes, as veias brancas qual banha de porco.

Ah, a beleza da aplicabilidade!
As abóboras alaranjadas não têm olhos.
Estas salas estão cheias de mulheres que pensam ser pássaros.

Esta é uma escola estúpida.
Eu sou uma raiz, uma rocha, uma pelota de coruja,
Sem sonhos de qualquer espécie.

Mãe, você é a única boca
À qual eu seria uma língua. Mãe da alteridade
Devore-me. Basbaque de lixo, sombra de vãos de portas.

Eu disse: preciso recordar isso, de estar pequena.
Havia flores tão colossais,
Bocas roxas e vermelhas, totalmente adoráveis.

Os arcos das hastes de amora me fizeram chorar.
Agora eles me acendem como uma lâmpada elétrica.
Por semanas eu não consigo lembrar coisa alguma.


2. Casa Escura

Esta é uma casa escura, muito grande.
Eu mesma a fiz,
Cela por cela, de uma esquina discreta,
Mascando o papel cinzento,
Pingando a cola,
Assobiando, mexendo as orelhas,
Distraída em pensamentos.

Ela tem tantos porões,
Tantas reentrâncias traiçoeiras!
Eu sou redonda como uma coruja,
Eu vejo com minha própria luz.
Qualquer dia eu boto uns cãezinhos no lixo
Ou adoto um cavalo. Minha barriga se agita.
Preciso fazer mais mapas.

E estes túneis medulares!
Mãos verruguentas, devoro meu caminho.
O Garganta consome os arbustos
E as paneladas de carne.
Ele mora num velho poço,
Um buraco pedregoso. Ele é o culpado.
Ele é um tipo gorducho.

Cheiros de seixo, aposentos estilo nabo.
Narininhas respirando.
Pequenos amores humildes!
Insignificâncias, cartilagens de narizes,
É morno e tolerável
Na víscera da raiz.
Eis a mãe aconchegante.


3. Mênade


Uma vez eu era comum:
Sentava ao pé de feijão de meu pai
Comendo os dedos da sabedoria.
As aves davam leite.
Quando trovoou me escondi sob uma pedra chata.

A mãe das gargantas não me amava.
O velho encolheu a um boneco.
Ah, eu sou grande demais pra retornar:
Leite de ave é plumagem,
As folhas de feijão são mudas feito mãos.

Este mês serve pra pouca coisa.
Os mortos amadurecem nos vinhedos.
Uma língua vermelha está entre nós.
Mãe, fique longe do meu curral,
Eu estou me tornando outra.

Cabeça-de-cão, devoradora:
Me alimente com as bagas da escuridão.
As pálpebras não fecham. O tempo
Desenrola do grande umbigo do sol
O seu brilho sem fim.

Eu tenho que engolir tudo isso.

Dama, quem são estes outros no tonel da lua –
Dormindo de porre, braços e pernas em discordância?
Sob esta luz o sangue é negro.
Diga-me o meu nome.


4. A Besta-Fera

Ele era homem-touro antes,
Rei da bandeja, meu bicho da sorte.
Respirar era fácil no seu abraço aéreo.
O sol pousava no seu sovaco.
Nada mofava. Os pequenos invisíveis
Desdobravam-se para servi-lo.
As irmãs azuis me mandaram a outra escola.
Macaco vivia embaixo do chapéu de burro.
Ele sempre me atirava beijos.
Eu mal o conhecia.

Livrar-se dele – quem há de?
Patas-choramingas, gementes e doridas,
Alminha de Mascote, entranhas são estranhas.
Uma lata de lixo já lhe é suficiente.
A escuridão é o seu osso.
Chame-o por qualquer nome, ele vai atender.

Lodo-fossa, alegre face de pocilga.
Eu casei com um armário de entulhos.
Eu me deito numa poça de peixe.
Aqui embaixo o céu sempre está caindo.
Lama de chiqueiro na janela.
Os insetos estelares não me pouparão este mês.
Eu cuido de um lar no reto do Tempo
Entre formigas e moluscos,
Duquesa do Vazio,
Noiva do Peludentuço.


5. Notas de Flauta numa Lagoa Juncosa

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Agora desce, peneirando-se em camadas, o frio
Ao nosso refúgio à raiz do lírio.
Sobre a cabeça os velhos guarda-sóis do estio
Murcham feito mãos sem tutano. Há pouco abrigo.

De hora em hora o olho do céu alarga seu vago
Domínio. Estrelas estão fixas.
A boca-de-sapo e a boca-de-peixe já tragam
O licor da indolência, e tudo naufraga

Numa suave coifa protetora de esquecimento.
As cores fugitivas morrem.
Larvas de mosca d´água dormitam em cápsulas de seda,
As ninfas de cabeças-lâmpadas acenam ao sono, pétreas.

Marionetes, libertas das cordas do manipulador,
Usam chifres-máscaras na cama.
Isso não é a morte, é uma coisa mais segura.
Os mitos alados nunca mais vão nos comover:

Estão mudas as exúvias que cantaram de cima das águas
O gólgota na ponta de um junco,
E como um deus frágil feito o dedo de um infante
Sairá da própria casca e navegará pelos ares.


6. Bruxa em Chamas

Na praça do mercado estão empilhando os galhos secos.
Um mato trançado de sombras é uma pobre manta. Habito
Uma imagem de cera de mim mesma, corpo de boneca.
A doença começa aqui: sou o alvo de dardos para bruxas.
Somente o diabo pode passar um sabão no diabo.
No mês das folhas secas eu subo numa cama de fogo.

É fácil culpar a treva: a boca de uma porta,
O ventre do celeiro. Apagaram minha chispa.
A dama de élitros pretos me guarda em gaiola de papagaio.
Que olhos grandes os mortos têm!
Estou íntima com um espírito peludo.
Fumaça rodopia do bico deste jarro vazio.

Se eu sou assim, pequena, mal eu não posso fazer.
Se sequer me movimento, nada posso derrubar. Assim falei,
Sentada sob a tampa da panela, inerte grãozinho de arroz.
Estão acendendo os bocais do fogão, anel por anel.
Somos cheios de amido, meus branquinhos camaradas.
Crescemos. Dói no início. Línguas rubras dirão a lição.

Mãe dos besouros, só peço que abras o punho:
Voarei pela boca das velas qual mariposa não-tostada.
Devolve minha forma. Estou pronta para interpretar os dias
Em que fiz par com a poeira à sombra de uma pedra.
Meus tornozelos brilham. O brilho ascende às minhas coxas.
Eu estou perdida, perdida, nos meandros de toda esta luz.


7. As Pedras

Esta é a cidade onde se remendam os homens.
Eu deito sobre uma grande bigorna.
A achatada abóbada azul

Voou feito o chapéu duma boneca
Quando eu caí fora da luz. Ingressei
No estômago da indiferença, armário sem fala.

A mãe dos pilões me reduziu.
Tornei-me um grânulo tranquilo.
As pedras da barriga eram pacíficas,

A pedra-chefe quieta, nada a chacoalhava.
Somente a boca-buraco flauteava,
Grilo impertinente

Numa pedreira de silêncios.
O povo da cidade ouviu.
Caçaram as pedras, taciturnas e apartadas,

A boca-barriga gritando aonde estavam.
Ébria como um feto
Eu sugo as papinhas da escuridão.

Tubos de alimento me envolvem. Esponjas lambem-me os liquens.
O mestre-joalheiro impele seu cinzel para
Extrair um olho da pedra.

Este é o pós-inferno: eu vejo a luz.
Um vento destampa a câmara
Do ouvido, velho preocupador.

A água amolece o lábio da pederneira,
E a luz do dia dispõe sua mesmice na parede.
Os enxertadores são alegres,

Esquentando as torqueses, içando os delicados martelos.
Uma corrente agita os fios
Volt sobre volt. Categute sutura minhas fissuras.

Um operário passa carregando um torso cor-de-rosa.
Os almoxarifados estão cheios de corações.
Esta é a cidade das peças sobressalentes.

Meus membros enfaixados tem cheiro doce feito borracha.
Aqui operam cabeças, ou quaisquer pedaços.
Às sextas-feiras as criancinhas vêm

Para trocar os ganchos por mãos.
Mortos deixam os olhos para os outros.
Amor é o uniforme da minha enfermeira careca.

Amor é tendão e osso da minha praga.
O vaso, reconstruído, abriga
A rosa elusiva.

Dez dedos moldam um bojo às sombras.
Meus remendos coçam. Não há nada a fazer.
Ficarei nova em folha outra vez.



Sylvia Plath
versão brasileira:
Ivan Justen Santana