
Augusto dos Anjos e dos homens.
Meu poeta maior, talvez a mais singularíssima pessoa de todo esse mundão de deus, morreu aos trinta anos de pneumonia, pobre e menosprezado pelos seus contemporâneos. É que as excentricidades e ineditismo de seus acordes levaram muitos críticos e intelectuais a diminuir o valor do poeta, relegando-o a um segundo plano, a uma casta inferior. Uma idiotia imperdoável, mas que vem sendo corrigida com o passar do tempo. É incrível, a cada ano o poeta mais se moderniza, mais se atualiza e mais leitores se maravilham com a sua obra. A verdade é que, quando a lira de Augusto delira, percorre, clara e limpidamente, o vasto universo da imaginação e da fantasia, com o brilho dos astros, da alegria da descoberta, mesmo diante do abismo mais intransponível. O poema negro é um belo exemplo dessa afirmação, onde o sonho é pesadelo e mesmo assim o poeta estrebucha, resiste, indaga, se encolhe todo dentro dele, esperando crispado o verme violento arrancar-lhe o primeiro naco de sua carne magra, em câmera lenta diante do turbilhão veloz da passagem dos séculos.
Toda a sua obra é assim assombrada, mas a atitude do poeta não é de perplexidade; ao contrário, a sua grandeza consiste na insubmissão, na atitude criadora, revolucionária, capaz de lançá-lo às esferas mais inatingíveis, excitando sua alma apaixonada para buscar a beleza transcendente, a alma gêmea da verdade, mesmo que isso signifique decomposição.
EU, seu único e derradeiro livro, foi recebido com desdém pela crítica, pela maioria dos poetas, mas o povo o adotou amorosamente. Nenhum poeta brasileiro tem tantos poemas declamados como Augusto. Olavo Bilac, príncipe dos vates brasileiros, foi um dos primeiros a repudiar o poeta e desmerecer-lhe a obra, mas, em vida, redimiu-se e foi à terra natal do poeta paraibano exigir das autoridades o augusto busto.
É que o nosso poeta maior não bebeu água de uma só fonte, sorveu avidamente da ciência, da religião, das artes, da filosofia e sempre com uma atitude crítica, sem passividade ou peleguismo diante delas. Uns querem-no parnasiano; outros, simbolista; aqueles, cientificista, modernista, filosofista, anarquista, demonicista, futurista e o caralho aquático; eu, simplesmente o amo,
como devem ser amados os verdadeiros poetas.
Assim como Mallarmé, Augusto se defrontou com a musa enigmática; o primeiro se entregou aos símbolos e enfeitiçou-os com a graça e a sutileza dos faunos; o nosso poeta, abriu o coração e caiu de boca na desgraça, para tirar dela o seu encantamento, a sua beleza cintilante: a sonoridade potencial dos seres. Mas não é só a sua obra que assombra, o próprio Augusto parecia um espectro, pelo menos é o que se extrai desse relato de seu contemporâneo e amigo, Órris Soares:
“De certa feita bati-lhe às portas, na rua Nova, onde costumava hospedar-se. Peguei-o a passear, gesticulando e monologando, de canto a canto da sala. Laborava e, tão enterrado nas cogitações, que só minutos depois se deu conta de minha presença. Era sempre esse o seu processo de criação. Toda arquitetura e pintura dos versos as fazia mentalmente, só as transmitindo para o papel quando estavam prontas, e não raro começava seus sonetos pelo terceto final.
Sem que eu nada lhe pedisse, começou a recitar e declamando sua voz ganhava timbre especial, tornava-se metálica, tinindo e retinindo as sílabas. Havia mesmo transfiguração na sua pessoa. Ninguém diria melhor, quase sem gesto. A voz era tudo: possuía paixão, ternura, complacência, enternecimento, poder descritivo, movimento, cor, forma.
Quando dei por mim, estava pasmado, colhido pelo assombro inesperado de sua lira, que ora se retraía, ora se arqueava, ora se distendia, como um dorso de animal felino.”
Augusto foi de tudo um muito. E por isso nos dignifica e engrandece, mesmo quando nos atira na lama da putrefação. Há alguns anos, escrevi um poeminha explicativo para os que ainda rejeitam a sua obra por não compreendê-la em sua essência.
aos que não entendem Augusto dos Anjos
nada de aberração
apenas fez das tripas
o coração
Mas o melhor mesmo do nosso Brasil é que ele é pródigo em poetas. Que país pode contar, naquela época, entre suas estrofes com duas de tamanha magnitude e beleza?
....
E quando vi que aquilo vinha vindo,
Eu fui caindo como um sol caindo,
De declínio em declínio, e de declínio
Em declínio, com a gula de uma fera,
Eu quis ver o que era e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!
....
Augusto dos Anjos
...
Mas essa mesma algema de amargura
Mas essa mesma desventura extrema
Faz que tua alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura
...
Cruz e Sousa
Ou ainda que planeta, nesse mesmo período, pode ter duas leituras da existência humana, dois sonetos tão contraditórios em sua essência e tão distintamente revestidos do mesmo amor e sentido de entrega e compaixão? Com essa luminosidade ? Com esse encantamento sonoro? Com essa arquitetura?
Eterna mágoa
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem que é triste,
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à mágoa a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
Augusto dos Anjos
Sorriso interior
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.
Os abismos carnais da argila
Ele os vence sem mágoas e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em redor oscila,
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do dilúvio.
Cruz e Sousa
Sou fanático por esses dois, assim como sou por Gregório de Matos, Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Campos de Carvalho, Noel Rosa, Adoniran Barbosa, Jamil Snege, Helena Kolody, Marcos Prado, Paulo Leminski e tantos outros que já se foram e povoaram os meus sonhos e fizeram de minha vida um universo sonoro, colorido o bastante para compreender estas estrofes do Monólogo de uma sombra de Augusto dos Anjos, e dos homens:
...
Ah! Dentro de toda alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de uma espera opaca.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre
A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
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Por essas e por outras, é que esse meu amor enorme e desajeitado se estende aos meus contemporâneos Sérgio Viralobos, Walmor Góes, Roberto Prado, Solda, Roberto Bittencourt, Bira, Dalton Trevisan, Domingos Pellegrini, Hamilton Faria, Mário Bortoloto, Édson de Vulcanis, Edílson Del Grossi, Rodrigo Barros, Miran, Luiz Antonio Ferreira, Magoo, Chico Buarque, Ernani Buchmann, Alice Ruiz, Marilda Confortin, Luana Vignon, Jorge Ferreira, Fernando Koproski, Ivan Justen, Carlos Careqa, Tatára, Cabelo, Alexandre França, Cobaia, Wilson Bueno, Jorge Mautner, Caetano Veloso.
E tantos que não me perdoarei jamais pela minha memória falha.
Beijo a todos e mãos à obra!
O Morcego
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede...”
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A consciência humana é este morcego!
Por mais que gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
A Idéia
De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...
Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica!
As Cismas do Destino
....
Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minha alma!
E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era só o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.
Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!
...
Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda moral do cristianismo!
Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!
...
Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!
Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no ‘Engenho” também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!
Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!
...
O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teologia sem princípios.
Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!
Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!
Monólogo de uma Sombra
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Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue imerso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta à quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!
Budismo Moderno
Tome, Dr., esta tesoura, e...corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
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Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo.
Os Doentes
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A vida vem do éter que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.
Eu voltarei, cansado da árdua liça,
À substância inorgânica primeva,
De onde, por epigênesis, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!
Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
...
O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna
O vagido de uma outra Humanidade!
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!